O peso da conta de luz

 

Edição 66 / Julho de 2011
Por Beatriz Dias 

Os encargos cobrados dos consumidores brasileiros estão entre os mais altos do mundo. E, no setor elétrico, isso é ainda mais evidente, considerando que os tributos e encargos cobrados podem representar quase a metade do valor da conta de energia.

Encargos e componentes monetários pesados, bitributação do ICMS, excesso de impostos setoriais e federais são algumas das características das tarifas de energia elétrica praticadas nos mercados livre e regulado. Estudos revelam que estes encargos e tributos podem chegar a 45,08% do valor total cobrado, o que representa um alto preço a se pagar, principalmente, para os grandes consumidores, que têm a energia elétrica como principal custo, sobrepondo, em alguns casos, inclusive, a folha de pagamento.Atualmente, a conta de energia incorpora as seguintes cobranças: tributos e encargos referentes a impostos federais (13,9%); impostos estaduais (20,8%); impostos municipais (0,02%); encargos trabalhistas (1,6%) e encargos setoriais (8,8%). As informações são do Instituto Acende Brasil, que conta com um impostômetro do setor elétrico no seu site (www.acendebrasil.com.br), registrando, segundo a segundo, quanto os governos federal, estaduais e municipais arrecadam desde o dia 1º de janeiro de 2011 em impostos e encargos cobrados na conta de luz. Em média, os governos arrecadam R$ 121 mil por minuto e, até o fechamento desta edição, já havia sido contabilizado o montante de R$ 33.576.900,00 em encargos e tributos na conta de energia em 2011.

A elevada carga tributária gera distorções que comprometem o desenvolvimento do setor elétrico e da própria economia do País porque, segundo o Instituto, encarece a energia para todos os consumidores, reduz os recursos disponíveis para investimentos na expansão e na qualidade de energia e gera pressão sobre as empresas do setor, que, devido à falta de transparência, acabam sendo oneradas pelo aumento das tarifas.

Mas como chegamos nesses números? Para entender como a conta de luz do consumidor comum ou de grandes empresas é dividida entre tantos componentes tarifários, é preciso voltar um pouco no tempo e analisar a gestão energética adotada no Brasil ainda no início de sua história no processo de eletrificação, no final do século XIX.

O advogado especialista em direito em energia elétrica e diretor jurídico do GrupoCom, Marcelo Machado Gastaldo, conta que o desenvolvimento da economia cafeeira no Estado de São Paulo, nesse período, foi fundamental para a consolidação da geração de energia no Brasil. “Decorria deste avanço da produção cafeeira um complexo de atividades, como ferrovias, expansão urbana, atividades comerciais e de serviços, bem como o surgimento das primeiras atividades industriais”, diz.

Para atender à demanda crescente por energia elétrica, impulsionada em grande parte pelo setor cafeeiro e pelo movimento de urbanização, o poder público abriu concessões para que empresas estrangeiras se instalassem no País e explorassem os campos de geração e distribuição de energia.

Com o aval do Governo Federal, as concessionárias internacionais adquiriram parte das empresas municipais e nacionais que atuavam no setor. Com grande poder de influência e econômico, as empresas de capital estrangeiro tinham total controle e liberdade sobre os valores das tarifas cobradas em solo brasileiro.

Contudo, em 1930, houve grande pressão por parte da sociedade brasileira que acreditava ser de competência do Governo Federal, e não de empresas com interesses particulares na geração de energia do País, a oferta de serviços e a fixação de tarifas. Para a população da época, o poder público tinha de concorrer com a exploração privada para baratear as tarifas praticadas.

Como forma de abrandar as pressões dos populares e da bancada oposicionista, em 1934 foi promulgado o Decreto nº 24.643, conhecido como Código das Águas. Segundo Gastaldo, “o Código regulamentava a propriedade das águas e sua utilização, dispunha sobre a outorga das autorizações e concessões para exploração dos serviços de energia elétrica; inclusive, sobre o critério de determinação das tarifas desses serviços públicos e a competência dos Estados na execução do próprio Código”.

O Código também estabeleceu que as autorizações ou concessões seriam conferidas exclusivamente a brasileiros ou empresas organizadas no Brasil. Considerado extremamente rígido pelas principais companhias do setor, a regulamentação fixou as tarifas a partir do serviço pelo custo.

Com o início da regulamentação e a nova ordem de revisão contratual e das concessões em atividades impostas pelo recém-criado Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica (CNAEE), as empresas estrangeiras encontravam-se em um impasse: o País crescia e a demanda por energia elétrica também, mas a possibilidade de atender a um grande mercado em potencial esbarrava na descapitalização das concessionárias internacionais, que sentiam reflexos da crise financeira que assolava o Brasil no final da década de 1930.

Com a falta de interesse por parte das companhias internacionais, que não conseguiam melhores tarifas que justificassem novos investimentos, o Governo Federal teve de lidar com a estrutura engessada por falta de capital e tecnologia.

Diante desse panorama, o Estado teve de tomar para si a responsabilidade de gerir o setor e investir em uma estrutura capaz de gerar, distribuir e fornecer energia.

Em 1947, para obter o capital necessário não apenas nessa área, mas também em campos com necessidades mais imediatistas – principalmente diante da crise econômica que assolava o País –, o Governo Federal conseguiu captar recursos por meio do Plano de Saúde, Alimentação, Transporte e Energia, o Plano Salte, um programa plurianual de investimentos.

Em 1951, o Governo Federal criou o Programa de Reaparelhamento Econômico (FRE). Segundo Marcelo Gastaldo, o FRE era “formado com recursos fiscais captados por um empréstimo compulsório dos contribuintes do Imposto de Renda e por empréstimos contraídos no exterior. Com a incumbência de administrar os recursos do FRE, foi criado o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico”.

Realidade tarifária

J&aacu

te; na década de 1960, época do “milagre brasileiro”, o mercado internacional encontrava-se mais interessado em realizar negócios com empresas nacionais e com o governo do País. Diante desse panorama, o setor elétrico foi beneficiado e a legislação até então vigente, o Código das Águas, foi revisto e os ativos das empresas estrangeiras foram atualizados.

Com essa nova realidade de investimentos constantes em desenvolvimento de tecnologia e expansão da rede elétrica, deu-se início à política de realidade tarifária. A primeira medida foi fixar alíquotas mais elevadas para o Imposto Único sobre Energia Elétrica, seguida da ampliação do montante arrecadado por empréstimo compulsório e da criação da Reserva Global de Reversão (RGR), que tinha como objetivo permitir a retomada das concessionárias não estatais.

Para dar sustentabilidade financeira ao setor elétrico, em 1971, a União promoveu aperfeiçoamentos na legislação tarifária. A Lei nº 5.655 previa a garantia de remuneração de 10% a 12% do capital investido no cálculo total da tarifa.

Não demorou muito para que fosse instituída, em todo o território nacional, a equalização tarifária. O decreto-lei previa o ajuste da remuneração de todas as concessionárias por meio da transferência de recursos excedentes das empresas superavitárias para as deficitárias.

Composição da tarifa

A maior fatia da conta de energia é dividida entre diversos componentes tarifários, como a Reserva Global de Reversão (RGR) que, entre os anos de 2010 e 2011 sofreu um aumento de 104,67%. Além da RGR, há também a Conta de Consumo de Combustíveis Fósseis dos Sistemas Isolados (CCC) que, embora não tenha sofrido um reajuste tão alto, contou com uma variação significativa, estipulada em 15,75%.

Porém, é necessário se levar em consideração, além dos mecanismos de correção monetária, os custos não gerenciáveis, que não estão sob o controle das concessionárias. Essa parcela corresponde aos custos de distribuição, energia comprada para revenda, custos de transmissão e encargos setoriais. Somados aos impostos e tributos – ICMS, PIS/Pasep e COFINS –, correspondem a 70% do valor pago pelo consumidor.

O alto valor pago pela tarifa de energia é um dos resultados desastrosos decorrentes da junção de vários componentes tarifários, expostos a reajustes constantes. O presidente da Associação Brasileira de Distribuidoras de Energia Elétrica (Abradee), Nelson Fonseca Leite, defende o setor: “o reajuste das tarifas é fruto de aumentos de custos verificados no período de doze meses, com os quais as distribuidoras de energia elétrica também são impactadas, assim como toda a sociedade brasileira”.

De acordo com o vice-presidente da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace), Ricardo Lima, “os encargos cobrados dos consumidores brasileiros estão entre os mais altos do mundo”. Conforme a Cartilha de Encargos desenvolvida pela Abrace em parceria com a Confederação Nacional de Indústrias (CNI) e baseada nos estudos da PSR Consultoria, os nove principais encargos do setor elétrico cobrados hoje no País foram criados com bons propósitos, como o desenvolvimento da expansão da oferta de energia elétrica, a regulação adequada do setor e a maior segurança no abastecimento. No entanto, a maior parte dos encargos não se justifica em termos técnicos nem econômicos.

Entre as falhas técnicas apontadas pela pesquisa, a Abrace questiona o fato de que apenas os consumidores arquem financeiramente com o pagamento da segurança do sistema pela modalidade do Encargo de Serviços do Sistema (ESS) criada para esse fim. Além de defender a revisão das tarifas e a divisão das cobranças de certos encargos e impostos a elos específicos da cadeia geração, distribuição, fornecimento, e não cobrança cumulativa, como se observa atualmente, as entidades do setor também questionam outro ponto polêmico: a bitributação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS).

“Trata-se de uma questão delicada. Os conjuntos de alíquotas são diferentes conforme o Estado da Federação”, analisa o assessor da diretoria da Abrace, Fernando Umbria. Conforme explica o professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico, Nivalde de Castro, o ICMS é o principal tributo cobrado e, desde 1988, passou a ser da competência de cada Unidade da Federação.

Essa alteração ocorreu com a Constituição Federal de 1988, que eliminou os impostos específicos, como o Imposto Único sobre Energia Elétrica (IUEE), deixando aos Estados a decisão de quanto cobrar. Dessa forma, hoje há Estados que cobram 35% e outros que dão isenção para o consumo de energia elétrica”, esclarece Castro.

Entretanto, o professor chama a atenção para o seguinte fato: “outro problema é que o ICMS incide sobre os encargos, tornando-o mais “pesado”, e como ele é fácil de ser cobrado, pois quem emite a fatura é uma distribuidora e o consumo de energia elétrica tem uma grande capilaridade social, ou seja, praticamente toda a população consome e paga, a cobrança é mais fácil. Outro aspecto negativo é que o ICMS é cobrado sobre a fatura emitida. Caso o consumidor fique inadimplente, a distribuidora paga antecipadamente do ICMS, mesmo não tendo recebido do consumidor o pagamento da fatura”.

Revisão tarifária

Adotar uma nova postura no estabelecimento dos valores cobrados no próximo ciclo de revisões tarifárias é mais do que necessária. Esta é a opinião do consultor da Andrade & Canellas, Ricardo Savoia, que afirma que “o terceiro ciclo pode trazer uma revisão alta no fluxo de caixa do setor, enquanto os ciclos um e dois serviram para blindar a base do setor. Com os leilões há a incerteza sobre o patamar de preços que serão praticados, mas tudo indica que o preço virá com viés de baixa, pois acredito que as agências reguladoras levarão em consideração a parcela de dívida que sumiu de seu balanço”.

Segundo Savoia, há morosidade na política re

gulatória do setor de energia, o que contribui para a perda de competitividade, e ele cita ainda exemplos de modelos bem-sucedidos: na Inglaterra, a tarifa é menor e nela já estão embutidas as verbas destinadas à regularização e democratização. Eles se antecedem aos problemas. “Na China, há subsídios sobre a energia fóssil mais atrativos do que no Brasil. Quem apresenta preço de energia mais baixo, consegue mais atenção por parte das empresas”, conclui.

Contudo, a Abradee não consegue se mostrar tão otimista em relação ao Terceiro Ciclo de Revisão Tarifária. Segundo o presidente da entidade, Nelson Fonseca Leite, os impactos são preocupantes, pois pode haver, entre outros fatores, redução significativa na geração de caixa do setor de distribuição, risco de renegociação dos financiamentos setoriais em condições mais restritivas.

Fonseca Leite também acredita que a expansão da qualidade do serviço diante do crescimento econômico do País será comprometida, além da redução da capacidade de alavancagem e da atratividade de capital novo para as distribuidoras.


Componentes tarifários

  • A Conta de Consumo de Combustíveis Fósseis (CCC) teve como diretriz básica de criação o rateio dos ônus e das vantagens do consumo de combustíveis fósseis voltado à otimização da operação dos sistemas elétricos interligados, conforme previsto no inciso III do art. 13 da Lei nº 5.899/73. Essa norma previu a incidência da CCC interligado sobre todas as empresas concessionárias atendidas por esses sistemas e atribuiu ao Poder Executivo competência para estabelecimento dos critérios correspondentes.
  • A Reserva Global de Reversão (RGR), instituída nos termos do art. 33 do Decreto nº 41.019/57, teve por finalidade a constituição de um fundo para cobertura de gastos da União com indenizações de eventuais reversões de concessões vinculadas ao serviço público de energia elétrica.
  • A Lei nº 10.438, de 26 de abril de 2002, instituiu a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). Os valores anuais recolhidos à CDE são homologados pela Aneel e têm a finalidade de prover recursos para o desenvolvimento energético dos Estados; a competitividade da energia
  • produzida a partir de fontes eólica, pequenas centrais hidrelétricas, biomassa, gás natural e carvão mineral, nas áreas atendidas pelos sistemas elétricos interligados; e promover a universalização do serviço de energia elétrica em todo o território nacional. A CDE, cuja duração será de 25 anos, é fixada anualmente e recolhida mensalmente pelas concessionárias e repassada para a Eletrobras.
  • A Lei nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996, instituiu a Taxa de Fiscalização de Serviços de Energia Elétrica (TFSEE) com vistas a constituir a receita da Aneel para cobertura das suas despesas administrativas e operacionais. A TFSEE é fixada anualmente pela Aneel e recolhida mensalmente, em duodécimos, por todos os agentes que atuam na geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. O Decreto nº 2.410, de 1º de dezembro de 1997, dispõe sobre o cálculo, cobrança e recolhimento da TFSEE. De acordo com este decreto, o valor anual da TFSEE a ser pago por cada agente deve ser equivalente a 0,5% do valor do benefício econômico auferido com a prestação do serviço. Dessa forma, a TFSEE é um encargo setorial diferenciado em função da modalidade do serviço prestado e proporcional à receita líquida do agente.
  • O Encargo de Serviços do Sistema (ESS) representa o custo incorrido para manter a confiabilidade e a estabilidade do Sistema para o atendimento da carga. Tal custo é apurado mensalmente pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e é pago pelos agentes da categoria de consumo aos agentes de geração que prestarem serviços não remunerados pelo Preço de Liquidação de Diferenças (PLD).
  • O encargo Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos (CFHUR) foi criado pela Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989, que instituiu para Estados, Distrito Federal e Municípios, uma compensação financeira pelo resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica, de recursos minerais em seus respectivos territórios, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, e demais providências.
  • O Encargo de Energia de Reserva (EER) é decorrente do processo de contratação desta energia e passou a ser cobrado de todos os usuários do Sistema Interligado Nacional (SIN), desde 2009. A primeira Liquidação Financeira do EER foi realizada pela CCEE em março de 2009 e inclui também todos os custos decorrentes da contratação da energia de reserva. O EER será proporcional à parcela da carga do agente no SIN, conforme medição da CCEE, em bases anuais.

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