Por meio da geração própria de energia, organizações abandonam o papel de coadjuvantes e passam a assumir o controle direto de sua produção energética, enviando uma clara mensagem de disposição para enfrentar os desafios do futuro
No universo empresarial contemporâneo, três letras têm desempenhado um papel crucial na definição do futuro das organizações: ESG – um acrônimo em inglês para ambiental (Environmental), social (Social) e de governança (Governance). Tal conceito dispõe-se a representar um compromisso sério com práticas corporativas que visam a sustentabilidade, a responsabilidade social e a transparência na gestão. E em meio a tamanha mudança de padrões e condutas, o setor elétrico assume um papel fundamental, contribuindo para a transformação de antigas práticas energéticas.
Ainda neste contexto, é possível notar que a discussão não se limita mais apenas à urgência das empresas adotarem fontes de energia renovável, como passa a abordar também um outro paradigma, que tem ganhado cada vez mais destaque nas manchetes sobre as principais corporações da indústria: a autoprodução de energia. Por meio dela, diversas organizações abandonaram o papel de coadjuvantes e passaram a assumir o controle direto de sua produção energética, enviando uma clara mensagem de disposição para enfrentar os desafios do futuro.
Em um dos exemplos mais recentes dessa tendência, a operadora Vivo anunciou, em outubro deste ano, um acordo com a Elera Renováveis para assumir quatro parques solares do Complexo Janaúba, em Minas Gerais – a maior usina de produção de energia solar do Brasil –, totalizando 237 MWp. Com a iniciativa, a companhia irá transferir 76% do seu consumo de energia, anteriormente do mercado livre, para a modalidade de autoprodução. Também em outubro, a AES Brasil, em parceria com a empresa química Unipar, anunciou a inauguração do Complexo Eólico Tucano, localizado nos municípios baianos de Tucano, Biritinga e Araci. Contando com 52 aerogeradores, o empreendimento corresponde a 322 MW de capacidade instalada de energia renovável adicionados à matriz elétrica brasileira.
Progressos, ajustes e a imprudência
De acordo com a Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia (ABIAPE), a autoprodução é um importante vetor de competitividade para a indústria há mais de um século, passando por momentos de altos e baixos ao longo deste período. “Em 2004, com a introdução do modelo setorial de expansão da geração por meio de leilões de energia destinada ao ambiente regulado, o autoprodutor perdeu espaço. Isso foi revertido nos últimos cinco anos, em razão da redução dos custos das tecnologias de geração eólica e solar e, sobretudo, com o surgimento de novos mecanismos de financiamento para projetos de geração renovável no mercado livre. Com isso, nos últimos dois anos a autoprodução em operação comercial cresceu cerca de 1 GW médio, chegando ao patamar de 4 GW médios”, afirma o presidente da associação, Mário Luiz Menel da Cunha.
Apesar do cenário favorável, o executivo explica que o panorama da autogeração de energia pode enfrentar novas mudanças. “O crescimento dos encargos setoriais que não incidem sobre a autoprodução e a popularização de arranjos de autoprodução com baixa barreira de entrada começou a atrair outros perfis de consumidores, interessados principalmente em evitar o pagamento de encargos. A ABIAPE vem tratando o tema junto aos órgãos e entidades competentes, com o objetivo de ajustar as regras vigentes e, em especial, promover a redução estrutural de encargos setoriais pagos pelo consumidor.”
Segundo Menel da Cunha, nos últimos anos, devido ao aumento substancial das tarifas de energia elétrica, algumas avaliações têm sugerido a inclusão dos autoprodutores no pagamento de encargos, com o intuito de ampliar a base de contribuintes e minimizar os efeitos individuais nas tarifas – ação que, na avaliação do gestor, se trata de uma imprudência. “Tal medida representa um subsídio cruzado perverso, impondo um peso significativo sobre as indústrias eletrointensivas, e, consequentemente, impactando negativamente a geração de empregos, renda e arrecadação tributária no Brasil”, lamenta.
Para o especialista, incluir a energia autoproduzida na base dos pagadores é transferir o pagamento de encargos do consumidor ao agente gerador. “A ABIAPE vem auxiliando os órgãos e entidades competentes com estudos técnicos sólidos que oferecem uma compreensão clara de como essa abordagem superestima os efeitos positivos que a medida teria sobre a redução da tarifa de energia elétrica e, ao mesmo tempo, negligencia seus impactos negativos econômicos, sociais e ambientais”, completa.
Autoprodução de energia no Brasil: Projeto Sol do Cerrado
Investindo em geração própria de energia desde o final da década de 90, a mineradora brasileira Vale iniciou seu portfólio de autoprodução focada em usinas hidrelétricas e, nos últimos anos, passou a aplicar recursos também em energia eólica, através de sua subsidiária Aliança Geração de Energia. Recentemente, a multinacional deu mais um passo em direção à sustentabilidade energética com a implementação do Projeto Sol do Cerrado. Localizado no município de Jaíba, no estado de Minas Gerais, o empreendimento foi lançado em novembro de 2022 e atingiu a operação plena em julho deste ano, figurando como um dos maiores parques de energia solar da América Latina.
“O projeto possui capacidade instalada de 766 MWpico e geração média de 193 MW. A energia é inserida no Sistema Interligado Nacional (SIN) para atender as demandas energéticas das nossas operações”, explica Virginia Perez, gerente de Eficiência Energética e Descarbonização da mineradora. Com 1,4 milhão de placas solares, o Sol do Cerrado tem capacidade para abastecer uma cidade de 800 mil habitantes – para se ter ideia da dimensão, seria praticamente possível suprir a demanda do município de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro.
A especialista em gestão destaca que a planta solar integra um portfólio de energia renovável que está alinhado com os desafios ambientais mundiais e com o objetivo da Vale de atender a 100% das suas operações com energia renovável no Brasil até 2025, e globalmente até 2030.
Com 1,4 milhão de placas solares, o Sol do Cerrado tem capacidade para abastecer uma cidade de 800 mil habitantes.
Imagem: Divulgação/Vale.
Ainda de acordo com Virginia, estudos ambientais realizados para o licenciamento do projeto revelaram a identificação de aproximadamente 2.700 hectares de áreas de relevância ambiental dentro do empreendimento. “Essas áreas foram devidamente cercadas, o que já vem viabilizando a recomposição da vegetação original. Juntas, elas servem como abrigo e deslocamento de exemplares da fauna, conforme observado em nossos monitoramentos ambientais. A ocorrência desses animais é um indicador de que o Sol do Cerrado vem favorecendo o processo de regeneração natural das áreas verdes em seu interior, contribuindo para a conservação da biodiversidade local”, enfatiza.
Do ponto de vista social, a gerente expressa com orgulho que aproximadamente metade da mão de obra empregada na iniciativa foi recrutada localmente, sendo 16% desse contingente composto apenas por mulheres. “Além disso, juntamente com nossos parceiros, implementamos programas de capacitações técnicas voltadas à montagem eletromecânica de usina fotovoltaica e outros temas, buscando preparar a comunidade local para o mercado de trabalho, como um legado permanente no território.”
Transformações no setor de alumínio
No contexto global, a produção de alumínio faz parte de um dos setores que continua predominantemente dependente de energia elétrica gerada a partir da queima de carvão ou gás natural. No entanto, a Companhia Brasileira de Alumínio (CBA) tem se destacado ao adotar estratégias inovadoras, posicionando-se como uma referência no mercado. Atualmente, a empresa alcançou um marco significativo ao diversificar suas fontes energéticas – a maior parte da energia utilizada é proveniente de suas 17 hidrelétricas próprias e seis consorciadas, totalizando uma capacidade instalada de 1434 MW.
Desde janeiro deste ano, a CBA também incorporou em sua matriz a energia gerada pelos parques eólicos do complexo Ventos do Piauí II e III, localizados nos estados de Pernambuco e Piauí, com uma capacidade instalada de 171,6 MW. Com o início das operações dessas usinas, o potencial de geração da companhia tornou-se suficiente para atender a totalidade de sua demanda energética. Em situações específicas, a empresa participa do mercado de compra e venda de contratos de energia, visando otimizar seu balanço energético.
“A CBA adquiriu a participação nos ativos de autoprodução de energia eólica em 2021, seguindo um planejamento de ampliação e diversificação da matriz de suprimento de energia da companhia, que considera a evolução do consumo que acompanha sua produção industrial e o término de concessões de hidrelétricas. Em linha com essa estratégia de diversificação da matriz energética, a CBA tem estudado também outras opções de geração de fontes renováveis, como energia solar”, declara o diretor do Negócio Energia da companhia, Daniel Marrocos Camposilvan.
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Através do investimento na autogeração de energia por meio de parques eólicos, a Companhia Brasileira de Alumínio (CBA) adquiriu capacidade instalada de geração suficiente para atender completamente sua demanda energética. Imagem: Reprodução/The Greenest Post.
Quando questionado sobre os desafios que acompanham o desenvolvimento de iniciativas de autoprodução de energia, Camposilvan destaca que entram em pauta questões comuns a grandes projetos de infraestrutura, especialmente no que diz respeito à estruturação, obtenção das licenças e financiamento. “Podemos destacar inicialmente o desafio de estruturar o projeto, que foi vencido por meio da alocação adequada dos riscos entre os sócios, segregando o risco de desenvolvimento do projeto, de operação e de produção da energia entre o autoprodutor e parceiros no projeto.”
O diretor salienta que a obtenção de licenças para projetos enfrenta múltiplos desafios, abrangendo os âmbitos federal, estadual e municipal, tornando-se fundamental coordenar todas as autorizações necessárias, antecipar-se para reunir todas as informações essenciais e elaborar relatórios de impacto sólidos.
Rumo a um futuro sustentável
Diante do cenário apresentado até aqui, fica nítido que a autoprodução de energia emerge como um guia, apontando não apenas para a redução de custos, mas também para um futuro onde a economia se funde de maneira intrínseca com a sustentabilidade.
“A autoprodução é uma decisão individual da indústria, porém seus efeitos positivos transbordam para a sociedade, visíveis tanto na economia, no meio ambiente e nas comunidades locais. O autoprodutor é um importante indutor da expansão da geração de energia renovável nos dias de hoje, com relevância indiscutível para a descarbonização da indústria nacional, incluindo segmentos de difícil descarbonização. Por meio da autoprodução, o Brasil pode ser um dos líderes mundiais na produção de aço verde, alumínio verde, entre outros produtos com baixo, ou nenhum teor de carbono”, pondera Menel da Cunha.
Reportagem desenvolvida por Fernanda Pacheco.