Edição 106 – Novembro de 2014
Por Bruno Moreira
Para agentes do mercado, a MP 579 e o despacho de térmicas acarretaram uma dívida de R$ 105 bilhões ao setor elétrico, que deverá ser repassada à tarifa de energia nos próximos anos. A eficiência energética surge, então, como saída para racionalizar o consumo e diminuir os efeitos do aumento do preço da energia.
A Medida Provisória (MP) nº 579, instituída pela Presidência da República no dia 11 de setembro de 2012, tornou-se um verdadeiro marco para o setor elétrico. Para a maioria dos agentes do setor, não pelos melhores motivos. Segundo eles, a medida – que, posteriormente se tornou a Lei nº 12.783 de 2013 – desestruturou o setor elétrico como um todo. De acordo com cálculos realizados pelo diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), Adriano Pires, conjuntamente com o presidente da PSR Consultoria, Mário Veiga, em decorrência da MP 579 – que tratou da antecipação da renovação das concessões das distribuidoras e estabeleceu a redução das tarifas de energia elétrica – o segmento acumulará para 2015 um prejuízo de R$ 105 bilhões.
A ideia do governo de redução de 20% das tarifas cobradas aos consumidores cativos de energia foi comemorada em um primeiro momento, já que altas tarifas de energia afetam diretamente grandes consumidores como as indústrias – elas entram no chamado Risco Brasil – e consequentemente a competitividade do país. Contudo, de acordo com Pires, o problema foi como o Governo Federal fez isso. “Ele errou a mão”, destaca o diretor do CBIE. “Porque quando se faz uma política de redução de tarifas deve-se pensar também na questão dos investimentos, na expansão do sistema”. Para ele, o governo reduziu a tarifa em valores muito abaixo do que propiciaria a continuidade da expansão do sistema. “E o pior, reduziu de maneira drástica em um momento que o custo da energia estava crescendo”, afirma. Além disso, o governo não se preocupou com eficiência energética, conscientizando a população para consumir de maneira mais eficiente.
Do mesmo modo, pensa o advogado especialista em petróleo, gás e energia, Claudio Pinho, para quem a política de redução de 20% da tarifa de energia tinha tudo para dar certo caso fosse acompanhada por duas outras políticas: o desenvolvimento de infraestrutura a fim de gerar uma facilitação de demanda e uma maciça campanha de redução de consumo de energia elétrica, com incentivos para quem economizasse energia e punições para quem assim não o fizesse.
Nada disso foi realizado pelo governo, segundo estes especialistas, e problemas decorreram da MP 579. Algumas distribuidoras, o caso da Cemig, Cesp e Copel, não aderiram à medida provisória. Tinham este direito, mas como contrapartida perdiam a oportunidade da renovação automática por mais 30 anos. Conforme Pires, houve uma descontratação dessas empresas. Juntou-se a isso, segundo o diretor do CBIE, a insistência do governo em manter um preço da tarifa muito baixo para os leilões de energia nova nos anos subsequentes, o que gerou baixa procura por parte dos geradores e, consequentemente, deixou algumas distribuidoras subcontratadas.
Subcontratadas no mercado cativo, as distribuidoras se viram expostas aos valores praticados no mercado livre de energia. Para piorar a situação, em decorrência das poucas chuvas, os reservatórios das usinas hidrelétricas ficaram em baixa e o governo teve de despachar usinas térmicas fora da ordem de mérito do custo para atender a demanda. Em razão disso, o preço da energia no mercado de curto prazo, o Preço de Liquidação das Diferenças (PLD), disparou, chegando a mais de R$ 800 o megawatt-hora.
Conforme Pires, com o intuito de “manter a promessa de redução de tarifa dentro do calendário eleitoral”, mesmo diante de preços tão altos, o governo não repassou o custo que estava sendo gerado ao distribuidor para o consumidor final e manteve a tarifa com 20% de desconto. No entanto, era necessário conservar as contas das companhias equilibradas e a forma encontrada pelo governo para fazer isso foi de início por meio de aporte do Tesouro Nacional, e, posteriormente, por meio de empréstimo via Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) junto a um consórcio formado por dez bancos. Esta operação foi considerada inusitada por especialistas, já que o CCEE é uma entidade sem fins lucrativos, sem ativos, funcionando somente como uma câmara para a liquidação das operações financeiras de compra e venda de energia no setor.
Conta bilionária
Em auditoria promovida pelo Tribunal de Contas da União (TCU), chegou-se ao número de cerca de R$ 60 bilhões relativos à Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) – fundo usado pelo governo para promover investimentos públicos no setor – nos anos de 2013 e 2014, ou seja, segundo o TCU, até o fim deste ano, o prejuízo do segmento em decorrência das ações governamentais para atingir a redução tarifária chegou a tal montante. A conta é dividida da seguinte forma: cerca de R$ 30 bilhões para o segmento de distribuição, contando repasses às distribuidoras e indenizações para aquelas que aceitaram antecipar a renovação da concessão; déficit de aproximadamente R$ 20 bilhões para os geradores hidrelétricos, relativo ao risco hidrológico; e outros R$ 10 bilhões para as empresas de transmissão de energia, também referente a indenizações.
Como dito anteriormente, o valor de R$ 105 bilhões apresentado por Pires e Veiga trata-se de uma projeção para a dívida, tendo em vista o horizonte de 2013, 2014 e 2015. De acordo com os especialistas, além da conta apresentada pelo TCU, estão previstas para o ano que vem perdas de R$ 30,5 bilhões, gastos de R$ 8,5 bilhões com o uso permanente das usinas termelétricas e R$ 22 bilhões em indenizações às concessionárias. Segundo o vice-presidente da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel), Paulo Cezar Tavares, este valor é o mais que o dobro da dívida acumulada pelo setor elétrico entre 2001 e 2002, quando houve a chamada “crise do apagão”. “E o racionamento físico ainda não chegou”, destaca Tavares.
Do custo total contabilizado até 2015, o vice-presidente da Abraceel acredita que R$ 25 bilhões devam ser pagos pelo tesouro, ou seja, pelo contribuinte, e os restantes R$ 80 bilhões estão guardados para serem repassados às contas de energia, devendo ser arcados pelos consumidores. Para se ter uma
ideia, segundo Tavares, se esta conta fosse ser repassada em um ano para as tarifas, haveria um aumento da ordem de 80%. “Qual é o cenário realista?”, questiona. “Cinco anos, no mínimo, de aumento de 10%, 15% acima da inflação. Então, pode contar cinco anos a tarifa subindo 20%”, afirma o vice-presidente da associação.
Para Tavares, o efeito do aumento do preço da energia já começou a ser sentido este ano. “Não é que os preços vão explodir, eles já explodiram. Quem poderia imagina o preço da energia na área de concessão da Elektro, aqui em São Paulo, subindo 40%?”, indaga. Em agosto deste ano, a Aneel autorizou o reajuste tarifário de 2014 da distribuidora, que resultou no aumento médio de 37,78% no preço aos consumidores finais. Os consumidores residenciais e de pequenos estabelecimentos, ligados em baixa tensão, tiveram as tarifas aumentadas em 35,97%. Já as tarifas das indústrias e estabelecimentos de grande porte, ligados em alta tensão, receberam aumento de 40,79%.
E este nem foi o maior aumento autorizado pela Aneel este ano. Na área da Companhia Energética de Roraima, que abrange 39.677 unidades consumidoras localizadas em 15 municípios do interior do estado, o valor da tarifa subiu 54,06%, tanto para consumidores de alta quanto de baixa tensão – residenciais, comerciais e industriais.
Eficiência pode ser a solução
O presidente da Associação Brasileira das Empresas de Serviços de Conservação de Energia (Abesco), Rodrigo Aguiar, vê esta situação vivida pelo setor na atualidade como um problema grave que deve ser combatido com medidas como a eficiência energética. Ferramenta que, conforme Aguiar, reduziria o impacto do aumento da tarifa nas contas de energia e serviria “por um lado, para tentar reduzir o consumo em uma ponta e com isso começar a desligar mais térmicas e poupar água nos reservatórios das hidrelétricas. E por outro lado, caso houvesse aumento da atividade econômica, e consequente elevação do PIB, teríamos energia para atender a isso”.
O grande problema é que a eficiência energética parece não estar entre as maiores preocupações do país. O presidente da Abesco explica que de 2008 para cá a intensidade energética vem aumentando, o que significa que o Brasil é ineficiente energeticamente. “Em países desenvolvidos ou em desenvolvimento, vemos que há um trabalho no âmbito da eficiência para que o aumento do PIB não equivalha ao aumento do consumo de energia elétrica. No Brasil, ocorre o contrário, o consumo aumenta mais que o PIB”, afirma Aguiar, sublinhando que “nenhum programa de eficiência energética vem sendo feito no Brasil para se ter máquinas mais eficientes, por exemplo”.
Tavares, da Abraceel, incentiva os agentes do segmento de eficiência energética a não esperarem pelo apoio governamental e realizarem ações por conta própria. “Só vejo um caminho para sairmos desta confusão: é preciso reduzir a demanda a um custo marginal unitário inferior a este megacusto de hoje”, afirma. De acordo com ele, qualquer projeto que as Secos consigam elaborar com um custo inferior a R$ 1 mil o MWh, com um payback (retorno financeiro do investimento inicial) de um ou dois anos, é completamente viável. “Na minha visão, a Abesco precisa se preocupar menos em ‘pedir autorização’, incentivos, linha de crédito, e começar a propor soluções”, enfatiza Tavares.
Entretanto, a realização de projetos nesta área não é tão fácil assim, pois não depende somente da vontade das empresas que prestam serviços de conservação de energia. Segundo estudo do Conselho Americano para uma Economia de Energia Eficiente – em inglês, American Council for an Energy-Efficient Economy (Aceee) -, o Brasil ocupa a penúltima posição entre as 16 maiores economias do mundo, no que diz respeito à eficiência energética. De 100 pontos possíveis, o país conseguiu apenas 30. Uma das piores pontuações aconteceu na avaliação do quesito “eficiência energética nas indústrias”. O Brasil somou 2 pontos de 25 pontos possíveis.
Independentemente dos esforços governamentais e de sua livre iniciativa, as Escos esbarram na própria falta de interesse de grandes consumidores, como indústrias, que são grandes alvos de projetos de eficiência. Segundo o presidente da Abesco, há uma acomodação da área industrial com relação ao consumo. “Não estão se preocupando com o impacto que já existe nos custos deles e com a própria produtividade”, comenta Aguiar.
Conforme o presidente da Abesco, a relação da indústria com a eficiência energética é de receio. “Às vezes, ela olha o projeto de eficiência energética como competindo com o próprio core business da empresa e, aí, obviamente, prefere investir no foco principal do seu negócio”, explana.
Outro motivo dos consumidores industriais não investirem mais em projetos de eficiência energética está ligado com o fato de eles em sua maioria serem realizados por meio de contratos de performance, no qual, basicamente, quem banca o projeto são as Escos, que recebem como contrapartida financeira a partilha (por tempo determinado) do montante de economia obtido na operação do cliente. “Alguns consumidores ainda veem com muita desconfiança este tipo de contrato”, afirma Aguiar.
O resultado, de acordo com o presidente da Abesco, é que a cada 10 projetos bons de eficiência energética realizados no país, apenas um é efetivamente implantado. Ante este quadro, de falta de consciência dos consumidores no que diz respeito à eficiência energética, Aguiar tem convicção que com o aumento de preço da energia da tarifa o interesse por projetos desta natureza irá aumentar. “A consciência virá com a dor”, afirma.
O diretor da empresa especializada na gestão de abastecimento de águas e energia Indeco, Otavio Santoro Jr, concorda em partes com o presidente da Abesco. Santoro explica que a redução “artificial” do preço das tarifas pela MP 579 em 2012 prejudicou o negócio da eficiência energética, porque com a tarifa reduzida o ganho econômico diminuiu e o payback aumentou de dois para quatro anos, aproximadamente. Agora, com o aumento das tarifas nos próximos anos, a expectativa é que o ganho econômico seja maior e o payback seja novamente entre um e três anos, tornando o negócio mais atrativo.
Contudo, como enfatiza o diretor da Indeco, o maior problema para as Escos, que é o financiamento do projeto d
e eficiência, persistirá. Santoro destaca que a Esco tem uma vantagem em relação às demais empresas da área: ela financia o próprio projeto, que pode ser pago posteriormente por meio dos contratos de performance. O problema é que são poucas as Escos que tem capacidade de investimento próprio. “Acho que no país temos umas cinco e a Indeco é uma delas”, diz o diretor, excetuando as empresas de conservação de energia das próprias concessionária, cujo custo do projeto tende a ser maior.
Neste sentido, para as Escos não adianta o preço da energia estar alto e atrativo a investimentos em eficiência energética se não houver incentivos do governo para que existam mais linhas de financiamento. “Via Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico Social (BNDES), por exemplo, é extremamente ruim, porque não há um sistema de financiamento exclusivo para as Escos”, afirma. Já, o Proesco, cujo objetivo é fornecer apoio a projetos de eficiência energética, segundo Santoro, existe somente no papel.
Ou seja, por falta de projetos financeiros estruturados do governo que facilitem o modelo de financiamento de empreitadas na área de eficiência energética, os investimentos acabam ficando todos a cargo das Escos, que, em sua maioria, não possuem dinheiro para isso. De acordo com Santoro, sua empresa consegue fazer os projetos porque conta com recursos próprios. Esta autossuficiência, aliás, faz com que a Indeco ajude as Escos de menor porte a financiar projetos de eficiência energética. Na realidade, essas empresas passam os contratos à Indeco e funcionam como prestadoras de serviço.
Não obstante o incentivo dado pelo vice-presidente da Abraceel para que as Escos ajam por conta própria, a impressão passada por especialistas é de que, sem o apoio governamental, não há como o mercado de eficiência energética aquecer. O presidente da Abesco, Rodrigo Aguiar, enfatiza a omissão do governo nos trabalhos que vem sendo desenvolvidos pelas Escos há 20 anos. “A Abesco quer uma participação mais ativa do governo, até porque da eficiência energética pode depender a segurança energética nacional e a economia do país”, diz. Para Aguiar, essa participação mais efetiva poderia ser realizada por meio de leilões – em âmbito federal ou regional – voltados a empreendimentos de eficiência energética.
O diretor da Indeco, porém, não acredita que o governo aumente o investimento em eficiência energética. Para ele, em doze anos desta gestão não houve sinalização para tal. Como possível saída, Santoro crê ser necessária a criação de uma assessoria na Abesco para funcionar como um canal junto ao Ministério de Minas e Energia (MME), visando facilitar o financiamento de projetos de eficiência energética.
Bandeiras tarifárias
Uma das soluções que vem sendo pensada pelo governo para tentar resolver o problema dos preços altos de energia elétrica é a redução do teto do PLD. A pauta está em debate pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que propôs o teto de R$ 388,04 o MWh, bem abaixo do que vinha sendo praticado até as últimas semanas de novembro: R$ 822,82 o MWh.
De acordo com a Abraceel, o teto indicado pela agência limita a representatividade do preço ao valor cobrado efetivamente por apenas 70% das termelétricas disponíveis, o que, segundo a entidade, vai na contramão das melhores práticas do mercado. A estimativa da associação é de que essa redução possa gerar um prejuízo de R$ 12 bilhões, relativos aos Encargos de Serviços dos Sistemas que serão usados para cobrir o custo de geração.
O presidente da Abraceel, Reginaldo Medeiros, propõe que, no lugar de se mexer no teto do PLD, o governo coloque em prática o sistema de bandeiras tarifárias, cobrando R$20/MWh para a bandeira amarela e R$ 50/MWh para a bandeira vermelha. “Essa política é suficientemente eficaz para reduzir o descasamento de caixa das distribuidoras por meio da ampliação dos sinais de preços ao mercado cativo”, acredita Medeiros.
As bandeiras tarifárias atrelam o preço da tarifa de energia elétrica às condições de geração de eletricidade do Sistema Interligado Nacional (SIN). São três bandeiras: verde, amarela e vermelha, que serão indicadas pela distribuidora na conta de luz. A bandeira verde significa que as condições hídricas são favoráveis e que não haverá nenhum acréscimo. A bandeira amarela é um sinal de alerta, mostrando que as condições não são tão favoráveis e que será preciso despachar algumas térmicas. Neste caso, a tarifa sofre acréscimo de R$ 1,50 para cada 100 quilowatt-hora (kWh) consumidos. Já a bandeira vermelha sinaliza que as condições são muito desfavoráveis. Aqui, a tarifa aumenta R$ 3 para cada 100 kWh consumidos.
Com o sistema de bandeiras tarifárias, as distribuidoras conseguirão repassar mensalmente o custo da energia mais cara, devido ao acionamento de térmicas, o que deve aliviar o dispêndio de caixa da concessionária. Atualmente, as distribuidoras carregam os gastos com energia mais cara no curto prazo até o próximo reajuste tarifário, que ocorre anualmente, quando só então os custos são repassados à tarifa dos consumidores. A medida, dizem os agentes do setor, aumentará ocasionalmente o gasto dos consumidores finais com energia elétrica, mas, por outro lado, dará a eles informações corretas sobre a geração de energia do setor, possibilitando que possam reduzir o consumo, se quiserem.
A implementação do sistema estava prevista para o início de 2014, mas foi adiada para janeiro de 2015 por solicitação de algumas distribuidoras que alegaram não estar com seus sistemas prontos para atender às novas regras.