Edição 56 – Setembro de 2010
Por Beatriz Dias
A história da eletrônica se confunde à história recente da humanidade que inspira e impulsiona novas descobertas tecnológicas.
Despertar ao alarme do celular, ligar o chuveiro, esquentar um copo de leite no micro-ondas, embarcar no metrô, chamar o elevador, ligar o computador e começar mais um dia de trabalho. Atividades simples como essas fazem parte da nossa rotina. Acionar ou desligar equipamentos que funcionam à base de dispositivos eletrônicos são atos mecânicos para os quais não damos muita bola. Mas basta algum deles sinalizar qualquer defeito, a bateria acabar ou, no mais temido dos casos, o fornecimento de energia ser interrompido para que sejamos acometidos da mais grave crise de abstinência elétrica e eletrônica.
Perdemos o chão, entramos em pânico, nos tornamos incapazes de lembrar de compromissos agendados. Somos acometidos por crises nervosas e pequenos ataques de fúria até tudo voltar à sua mais perfeita ordem: equipamentos funcionando e fornecimento contínuo e estável de energia elétrica.
Mas o mais surpreendente nisso tudo é que o período de tempo entre as primeiras aplicações da eletrônica no controle e conversão da energia elétrica até o completo estado de dependência, em que uma boa parcela da humanidade se encontra atualmente, é relativamente curto.
O princípio
Parte da física que estuda e utiliza as variações de grandezas elétricas para captar, transmitir e processar informações, a eletrônica começou a fazer parte em discussões e experimentos científicos no século XIX. Mas seus esboços mais nítidos aparecem com a criação do motor de indução do croata Nikola Tesla.
A obra de Tesla era capaz de produzir energia em corrente alternada (CA) e, por ser produzida pelo próprio dínamo, eliminava o estágio retificador realizado pelo comutador. As vantagens do uso de CA para transmitir e distribuir energia elétrica fizeram desta tecnologia a responsável pela surpreendente expansão da eletrificação a partir daquele período.
A partir de então, ao combinar eletrônica ao controle de sistemas de potência, nasceu a Eletrônica de Potência, ciência dedicada à aplicação dos dispositivos semicondutores para o controle e conversão de energia elétrica. Circuitos internos de computadores, sistemas de telecomunicações e diversos tipos de sensores e transdutores estão incluídos dentro desta área de interesse e suas aplicações fazem parte da rotina de bilhões de pessoas.
As inovações, entretanto, não seriam possíveis apenas com o grande feito do cientista croata, pois o funcionamento dos motores CA em velocidade constante impedia sua aplicação na alteração de velocidade, como em veículos (na época trens e bondes) ou em alguns processos industriais, como laminadoras. Em utilizações dessa natureza, exigia-se a alimentação por motores de corrente contínua (CC) em potências relativamente elevadas, como mostravam os experimentos do norte-americano Thomas Ava Edison.
Conforme explica o doutor em Engenharia Elétrica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), José Antenor Pomilio, Edison introduziu um eletrodo com potencial em sua lâmpada de filamento para evitar que houvesse disposição de material no bulbo. “Diante desse experimento o engenheiro e físico inglês, John Ambrose Fleming, conseguiu identificar a capacidade do dispositivo em atuar como retificado e converter uma alimentação CA em CC”, explica Pomilio. Uma vez que a produção de eletricidade se faz em CA, essa invenção possibilitou o processamento da energia elétrica de forma a se adequar às cargas CC.
Em seguida foram também desenvolvidos outros dispositivos retificadores, como as válvulas a arco de mercúrio, criadas em 1900 e que são mais adequadas às aplicações de potência elevada, devido à maior capacidade de condução de corrente e ao plasma criado pelo arco. Seu uso permitiu substituir o grupo motor-gerador para produção de corrente contínua necessária aos sistemas de tração.
Já nos anos 1920 surgiu a Thyratron, que não se tratava de um dispositivo a vácuo, uma vez que seu interior era ocupado por uma espécie de gás, responsável por ampliar a quantidade de íons e, em consequência, a capacidade de condução de corrente. Seu interruptor era acionado por um terminal de disparo. Com este dispositivo, foi possível aprimorar os processos alimentados em CC, tornando viável o ajuste do valor da tensão e/ou corrente por meio de uma retificação controlada.
Em 1948, a partir de estudos sobre o comportamento de elétrons na interface entre um metal e um semicondutor, os cientistas da Bell Telephone, John Bardeen,Walter Brattain e William Shockley conseguiram criar o transistor de silício. Mais tarde, os pesquisadores concebem o transistor disparável PNPN (tiristor ou retificador controlado de silício) e recebem o Prêmio Nobel de Física por suas pesquisas em semicondutores e descoberta do efeito transistor. O feito expressivo deu início à fase do estado sólido e trouxe uma série de vantagens em relação à emissão de energia termoiônica, como a facilidade de fabricação, automação e concepção de dispositivos. “Eficientes, eles também apresentavam baixo custo em relação aos seus antecessores”, esclarece o fundador da Sociedade Brasileira de Eletrônica de Potência e presidente do primeiro Congresso Brasileiro de Eletrônica de Potência (Cobep), o engenheiro eletricista Ivo Barbi.
Mas uma outra revolução estava prestes a começar quando em 1958 a General Electric Company passou a desenvolver comercialmente o tiristor. Foi então que, a partir da descoberta dos engenheiros da Bell Telephone, originou-se o Retificador Controlado de Silício (SCR), denominação dada pela empresa norte-americana, e que se tornou o primeiro dispositivo de estado sólido, marco do início da tecnologia e que revela o mesmo comportamento biestável da thyratron. Esta foi a razão pela qual o componente foi denominado tiristor.
O domínio sobre os processos de purificação do silício, aliado ao aprofundamento dos conhecimentos sobre os fenômenos da física do estado sólido e dos processos microeletrônicos permitiu, ao longo dos anos 1960 e 1970, o aumento na capacidade de controle de potência dos tiristores, atingindo valores na faixa de MVA.
Não houve, nesta fase, novas aplicações, mas a substituição de outros dispositivos pelos tiristores, com ganhos de rendimento e de desempenho, principalmente como retificador (conversor CA-CC) no acionamento de motores CC.
Já o professor Pomilio faz questão de frisar que: “Ao longo dos anos 1950 os trabalhos se concentraram na substituição do germânio pelo silício, como elemento sobre o qual se construir os dispositivos semicondutores. As propriedades do silício são muito superiores às do germânio, no que tange à realização de tais dispositivos, e possibilita a obtenção de maior capacidade de bloqueio de tensão e de condução de corrente”.
Informática em ascensão
Paralelamente às descobertas da eletrônica de potência, também eram criados outros modelos de equipamentos e que dependiam diretamente da evolução desse ramo da física para seu próprio desenvolvimento e eficiência: o computador digital eletrônico.
Enquanto os primeiros deles, o Electronic Numeral Integrator and Calculator (Eniac) e o Universal Automatic Computer (Univac) utilizavam centena de válvulas eletrônicas, seus sucessores eram transistorizados e capazes de efetuar um milhão de operações por segundo.
Ao longo dos anos 1960 e 1970, as aplicações eletrônicas, principalmente na área de computação, cresceram vertiginosamente. O suprimento de energia para sistemas espaciais, computador
es, bem como para usos residencial e comercial, como reatores para lâmpadas fluorescentes e televisores, exigiam soluções mais eficientes, leves e compactas. Nesta direção houve grande evolução dos transistores, não mais para operar como amplificador (na região ativa), mas para funcionar como interruptor.
Diferentemente dos tiristores que, por seu modo de funcionamento, se adequam à alimentação CA, os transistores têm sua melhor aplicação a partir de fontes CC. Ao desenvolvimento dos transistores bipolares de potência somou-se a evolução dos transistores de efeito de campo, principalmente o Metal-Oxide Silicon Field Effect Transistor (Mosfet), resultando, no final dos anos 1980, no surgimento do Insulated Gate Bipolar Transistor (Igbt).
O elevado ganho de rendimento obtido com os tiristores, em comparação com as soluções anteriores, não veio acompanhado de aumento na densidade de potência dos conversores, uma vez que os dispositivos continuavam a operar em 50/60 Hz. A disponibilidade de transistores com capacidade de comutar na faixa de dezenas ou centenas de kHz tornou possível uma grande redução no volume dos transformadores, indutores e capacitores utilizados nos conversores, minimizando o espaço requerido pelas fontes de alimentação dos equipamentos.
Inicialmente com transistores bipolares nos anos 1970, passando pelos Mosfet a partir da década seguinte em aplicações de baixa tensão, chegando aos Igbts nos anos 1990, em uma faixa de tensão e frequência capaz de alimentar cargas na faixa de MVA, as fontes chaveadas e os inversores (conversores alimentados em CC) tiveram um enorme desenvolvimento em termos de desempenho e confiabilidade.
Transportes ganham potência
Ao retornar um pouco no tempo, nota-se que o domínio sobre os processos de purificação do silício, aliado ao aprofundamento dos conhecimentos sobre os fenômenos da física do estado sólido e dos processos microeletrônicos permitiu, ao longo dos anos 1960 e 1970, o aumento na capacidade de controle de potência dos tiristores, atingindo valores na faixa de MVA.
Não houve, nesta fase, novas aplicações, mas a substituição de outros dispositivos pelos tiristores, com ganhos de rendimento e de desempenho, principalmente como retificador (conversor CA-CC) no acionamento de motores CC.
De acordo com o professor José Pomilio, em sistemas com alimentação CC, como em trens e trólebus, o uso dos tiristores enfrentou dificuldades, dada a incapacidade de este dispositivo ser desligado por ação do terminal de comando (gate). Para esse fim, foram desenvolvidas estratégias para possibilitar tal tipo de aplicação, como os circuitos de comutação idealizados por William McMurray, que permitiam o uso do tiristor em CC, bem como a obtenção de uma saída CA a partir da entrada CC. Tais inversores permitiriam a substituição de motores CA por motores de indução em aplicações de velocidade variável. A complexidade dos circuitos e os problemas de confiabilidade restringiram fortemente as aplicações destes circuitos. A primeira aplicação ferroviária no Japão ocorreu em 1969, com o controle do enrolamento de campo (por meio de conversor CC-CC) dos motores CC de tração. O uso de motor de indução nesta aplicação ocorreu em 1982.
No Brasil, a modernização dos transportes aconteceu a partir dos sistemas metroviários no final dos anos 1970, conforme explica o engenheiro eletrônico com pós-doutorado em História das Ciências pelo Instituto Smithsoniano, Gildo Magalhães dos Santos Filho: “as cidades de São Paulo e São Francisco, nos EUA, marcaram o surgimento dos metrôs modernos pesados, com maior capacidade de carga”. Ele cita o engenheiro eletricista especialista em Controle e Eletrônica de Potência em Zurich e Baden, na Suíça e que, atualmente, é membro da Comissão Metroferroviária da Associação Nacional de Transporte Público (ANTP), Peter Ludwig Alouche, quando afirma que “a eletrônica de potência permite a adoção do chopper para a regulação dos motores, pois sua operação é automática e a supervisão da circulação dos trens, a partir do Centro de Controle, é feita por computador. A velocidade aumenta para 100 km por hora e o intervalo entre composições diminui para 90 segundos. É importante ressaltar que São Paulo apresentou o primeiro metrô novo do mundo a entrar em operação com choppers”.
Magalhães ainda explica que, por conta de problemas técnicos, a inauguração do metrô de São Francisco foi adiada, deixando a primazia para os paulistas. Com isso, empresários de outros países quiseram conhecer a tecnologia dos metrôs de São Paulo, por isso, foi organizado um Congresso pelo engenheiro Peter Alouche, responsável pela implantação de todo o sistema elétrico nos trens metropolitanos da cidade. A antologia reuniu especialistas de Bruxelas (Bélgica), Nova York (EUA), Caracas (Venezuela), Lyon e Paris (França).
Nos últimos anos, a corrente alternada passou a ser adotada pelos trens metroviários. O motor de indução de corrente alternada é simples e de baixa manutenção, mas sua aplicação evoluiu apenas com o desenvolvimento da eletrônica e da informática.
Há previsões de que, no futuro, as cidades precisem cada vez menos de transporte, graças à telemática que permitiria às pessoas trabalharem em casa. Entretanto, na opinião de Peter Alouche, acontecerá o contrário: “Com a elevação da qualidade de vida das populações, a necessidade de transporte cresce, o que indica que os metrôs continuarão crescendo, mantendo-se tecnologicamente jovens e dinâmicos”.
No caso de São Paulo e das grandes metrópoles mundiais, o transporte metropolitano foi fundamental para facilitar o tráfego. Atualmente, os trens de alta velocidade já são empregados em quantidade significativa em grandes capitais. Na opinião do engenheiro, investir nessa tecnologia é uma “opção obrigatória” para o país crescer. “Não há uma grande potência hoje sem trens de alta velocidade, a China descobriu isso e fez em quatro anos 400 quilômetros de linha de metrô em Xangai. O Brasil precisa interligar as grandes cidades com trens e metrôs de grande velocidade”, analisa Alouche.
Fôlego às hidrelétricas
Outro campo que se beneficiou do desenvolvimento dos tiristores foi o sistema de transmissão de energia elétrica por meio de linhas em corrente contínua de alta tensão, envolvendo retificadores e inversores. A instalação do sistema CC para trazer energia da parte paraguaia de Itaipu (gerada em 50 Hz) até o sudeste do Brasil (onde se converte em 60 Hz) ocorreu na década de 1980. Ainda na área do sistema elétrico, surgiram dispositivos de compensação, como os reatores controlados a tiristor (RCT) ou o TCSC (Thyristor Controled Series Compensator), instalado no início deste século na interligação dos sistemas norte (Tucuruí) ao sistema sul.
Perspectivas
O direcionamento atual da Eletrônica de Potência tem sido em busca de processos de aproveitamento de energia mais ecologicamente adequados. “O uso de energia fotovoltaica, eólica, do hidrogênio, carecem de um processamento eletrônico para sua adequação às cargas”, avalia o professor José Pomilio.
O professor Ivo Barbi constata que o Brasil ocupa lugares cada vez mais prestigiados no tocante à tecnologia de controle e processo de energia. “O País se tornou peça importante
no que se relaciona à dimensão industrial na sociedade moderna e informatizada”, diz. Segundo ele, nossos pesquisadores estão entre os primeiros no mundo a divulgar artigos publicados em congressos internacionais.
Contudo, ele reconhece que há muito ainda que caminhar para que o Brasil atinja visão estratégica no desenvolvimento de semicondutores e não se torne ainda mais dependente de países como China, Alemanha e Japão. “Temos competência acadêmica para isso e o que nos falta é investimento por parte do setor industrial que não enxerga que, em longo prazo, esse ato pode prejudicar todos os setores, como o de transporte coletivo, que utilizam propulsão elétrica.