A Guerra das Tensões

Honrado pelo convite da Revista O Setor Elétrico em contribuir com minha visão sobre o atual momento do mercado, neste primeiro texto da coluna vou estabelecer uma visão sobre a evolução da prestação de serviços de fornecimento de energia no Brasil.   

Extensas regras e fundamentos estruturais do setor elétrico estão atualmente em processo e revisão. Não são poucas as mudanças e, naturalmente, trazem novos cenários comerciais e, principalmente, operacionais.

Reestruturações no setor são recorrentes, isso aconteceu no final da década de 1990, quando o Ministério de Minas e Energia conduziu uma extensa investigação sobre o setor, por meio do Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro (Projeto RE-SEB). O diagnóstico era claro: concentração vertical de atividades em empresas estatais com pouca (ou nenhuma) capacidade de investimentos e deterioração crescente dos serviços essenciais de fornecimento de energia.

Na altura, as conclusões referiam-se à necessidade de diversificar e segmentar as empresas do setor: (i) geração; ii) transmissão; e (iii) distribuição, para promover a concorrência, aumentar investimentos e instituir um modelo mais equânime.

 Essa segregação de atividades trouxe novos ares ao setor, introduziu a lógica bem-sucedida de leilões de geração no Ambiente de Contratação Regulado (ACR) e consolidou o Ambiente de Contratação Livre (ACL). Com isso, aumentamos a governança técnica no setor, nos tornamos referência mundial em operação de grandes redes de transmissão pela atuação do Operador Nacional do Sistema (ONS), no Sistema Interligado Nacional (SIN), e na geração de energia limpa.

Vinte anos se passaram e os desafios agora são outros. Grandes redes de transmissão geram custos cada vez maiores. Encargos setoriais mal planejados, geram distorções, e as intermináveis discussões tributárias sobre suas incidências, transformaram a nossa energia barata e limpa em uma tarifa cara e de baixa qualidade.

Mas vamos focar na distribuição, onde o cenário parece mais crítico. O somatório de fatores citados acima e o avanço da tecnologia, nos coloca hoje, de frente com a geração solar, que permite ao consumidor pressionado, a possibilidade de produzir sua própria energia. O mundo inteiro faz isso (ou pensa em fazer isso). Essa é a chamada geração distribuída de energia (GD) que instituiu, em 2012, o Sistema de Compensação de Energia (SCEE).

A partir 2018, a GD ganhou contornos exponenciais e os problemas regulatórios se iniciaram de forma efetiva, e na época, a REN nº 482/2012 ANEEL previa a revisão das regras em 2019. O processo foi amplamente divulgado e criou-se, naquele dia, um clima de confronto entre consumidores e concessionárias. O problema regulatório é, na essência, a questão da remuneração pelo uso da rede de distribuição, no caso o Fio B.

Sabendo-se que a distribuição de energia elétrica é caracterizada como um segmento da indústria que tem como objetivo diminuir a tensão da rede de transmissão, conectar centros produtores e fornecer energia elétrica aos consumidores, o Submódulo 7.1 do PRORET define que: “TUSD FIO B – formada por custos regulatórios pelo uso de ativos de propriedade da própria distribuidora que compõem a Parcela B, compreendida por: (i) custo anual dos ativos (CAA); e (ii) custo de administração, operação e manutenção (CAOM).”

Dessa forma, a componente tarifária TUSD Fio B é a componente destinada a remunerar os ativos e investimentos das distribuidoras. Lembrando que a distribuição compreende a rede elétrica e os equipamentos que operam em alta tensão (acima de 69 kV e abaixo de 230 kV), média tensão (acima de 1 kV e abaixo de 69 kV) e baixa tensão (igual ou inferior a 1 kV).

 Em decorrência da politização da discussão, a ANEEL não discutiu o assunto a tempo e, em paralelo, discutia-se o tema no âmbito do Congresso Nacional. Tais discussões culminaram, em janeiro de 2022, com a edição e publicação da Lei nº 14.300/2022, que cria o Marco Legal da Microgeração e da Minigeração Distribuída, Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE) e o Programa de Energia Renovável Social (PERS).[1] Saímos então de uma Resolução Normativa (a RN 482) para uma Lei Federal.

Pela Lei 14.300/2022, ficou estabelecido, entre outros pontos, a cobrança pelo uso da rede (ou pelo uso do fio) de forma gradual, de janeiro de 2023 a 2029. Nesse período, é cobrado percentual sobre a energia gerada sobre a Tarifa de uso do Sistema de Distribuição (TUSD) – cobrança essa que não existia.

Superado o tema regulatório da remuneração pelo uso da rede, hoje, o setor enfrenta mais um desafio, e desta vez, operacional.

Com o avanço exponencial da geração distribuída, e em especial neste ano de 2023, redes que foram projetadas para fluxos unidirecionais de energia, hoje precisam se adequar aos volumes de energia injetados por recursos distribuídos e manter a qualidade do fornecimento de energia elétrica aos consumidores. E são vários os quesitos de avaliação da qualidade do fornecimento de energia: (i) nível de tensão; (ii) oscilações de tensão; (iii) desequilíbrios de tensão; (iv) distorções harmônicas de tensão; e (v) continuidade do fornecimento, dentre outros.

Ocorre que, recentemente, o grande atrito entre consumidores geradores de energia e concessionárias de distribuição de energia é a perturbação que a geração causa nos níveis de tensão em alimentadores e postos de transformação. E são dois os relatos mais comuns: sobretensão e inversão do fluxo de potência.

Sabidamente, são fenômenos que existem de fato. Porém, cabe cuidadosamente à concessionária dar o devido tratamento aos fenômenos e conciliar o interesse dos acessantes interessados na geração própria de energia, conforme dispõe o artigo 73 da RN 1000/2021 da ANEEL[2].

No final do dia, a reflexão aqui proposta é sobre as constantes e necessárias adequações da regulação setorial ao avanço da tecnologia e à necessidade de enfrentamento da defasagem dos investimentos em redes de distribuição.

O protagonismo do consumidor na geração própria de energia só vai aumentar e novas tecnologias serão incorporadas ao cotidiano: baterias e veículos elétricos.

Essa nova e complexa realidade operativa pode antecipar uma discussão sobre quais os limites de tensão entre a transmissão e a distribuição? Devemos ter um Operador Nacional do Sistema (ONS) e um Operador de Sistemas de Distribuição (DSO)? Tudo isso (e muito mais) na nossa próxima coluna. Até lá!       


[1] https://in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.300-de-6-de-janeiro-de-2022-372467821

[2] Art. 73. A distribuidora deve, se necessário, realizar estudos para:

I – avaliação do grau de perturbação das instalações do consumidor e demais usuários em seu sistema de distribuição;

II – avaliação dos impactos sistêmicos da conexão;

III – adequação do sistema de proteção e integração das instalações do consumidor e demais usuários; e

IV – coordenação da proteção em sua rede de distribuição e para revisão dos ajustes associados, incluindo o ajuste dos parâmetros dos sistemas de controle de tensão, de frequência e dos sinais estabilizadores.

§ 1º Caso a conexão nova ou o aumento de potência injetada de microgeração ou minigeração distribuída implique inversão do fluxo de potência no posto de transformação da distribuidora ou no disjuntor do alimentador, a distribuidora deve realizar estudos para identificar as opções viáveis que eliminem tal inversão, a exemplo de: (Incluído pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

I – reconfiguração dos circuitos e remanejamento da carga; (Incluído pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

II – definição de outro circuito elétrico para conexão da geração distribuída; (Incluído pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

III – conexão em nível de tensão superior ao disposto no inciso I do caput do art. 23; (Incluído pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

IV – redução da potência injetável de forma permanente; (Incluído pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

V – redução da potência injetável em dias e horários pré-estabelecidos ou de forma dinâmica; (Incluído pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

§ 2º O estudo da distribuidora de que trata o § 1º deve compor o orçamento de conexão e conter, no mínimo: (Incluído pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

I – análise e demonstração da inversão do fluxo com a conexão da microgeração ou minigeração distribuída, incluindo a máxima capacidade de conexão e escoamento sem inversão de fluxo; (Incluído pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

II – análise das alternativas dispostas no § 1º e outras avaliadas pela distribuidora, identificando as consideradas viáveis e a de mínimo custo global; e (Incluído pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

III – responsabilidades da distribuidora e do consumidor em cada alternativa. (Incluído pela REN ANEEL 1.059, de 07.02.2023)

Autor:

Por Frederico Carbonera Boschin, diretor Executivo da Noale Energia e Sócio da Ferrari Boschin Advogados. Advogado especialista no Setor Elétrico com 18 anos de experiência no mercado. Atua na estruturação de projetos por fontes renováveis (Eólica, RSU, Biomassa, CGHs/PCHs e Solar), e modelos de negócios para GD e Mercado Livre. Bacharel em Direito (UFRGS); MBA em Gestão Empresarial (FGV/RS); Mestre em Direito Econômico (Universidade de Lisboa); e Pós-Graduado em Energias Renováveis (PUC/RS). Conselheiro da ABGD; Conselheiro Fiscal do Sindienergia RS e Professor do Curso de MBA da PUC/RS, UCS/RS e PUC/MG.

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