Edição 67 – Agosto de 2011
Por Estellito Rangel*
As normas técnicas brasileiras são elaboradas por comissões constituídas por representantes dos consumidores, dos produtores e de entidades neutras. Ao ser elaborada uma norma técnica nacional, é fundamental que o texto descreva os requisitos mínimos para um produto ou serviço, atendendo de forma harmoniosa e consensual aos três grupos envolvidos. Ou seja, os requisitos devem atender às necessidades do consumidor, devem estar dentro da capacitação fabril do produtor e devem estabelecer para os laboratórios de ensaios os critérios que avaliarão a conformidade.
Após a comissão ter concluído o texto da norma, há a etapa de consulta nacional, em que pessoas que não participam da comissão poderão examinar o texto e tecer comentários, já que, apesar do cuidado, alguns erros tipográficos, ou mesmo técnicos, podem ter passado despercebidos. Estes comentários são posteriormente analisados pela comissão, que decide pela inclusão ou não das sugestões recebidas e, finalmente, o projeto de norma poderá ser considerado concluído e enviado para publicação pela ABNT.
Portanto, ao comprarmos uma norma, devemos esperar receber um texto claro, coerente com os regulamentos técnicos e que permita sua pronta aplicação pelos profissionais responsáveis. Mas, como devemos proceder ao nos depararmos com textos como os abaixo, encontrados em normas ABNT?
1) Definição 3.18 – baixa tensão – conjunto de níveis de tensão utilizados para a distribuição elétrica e cujo limite superior é geralmente aceito como sendo 1 000 V CA [1].
Comentário: Tendo em vista a obrigatoriedade de cumprirmos a NR 10 [2], a qual define como baixa tensão até 1.000 Vca e 1.500 Vcc, como justificar uma definição “geralmente aceita”?
2) “Na ausência de normas IEC, recomenda-se que normas nacionais ou outras normas sejam seguidas” [3].
Comentário: Tendo em vista a disposição da NR 10, que “na ausência de norma nacional, as normas internacionais devem ser seguidas”, ou seja, a prioridade é dada à norma nacional, entendemos que este texto em norma ABNT afronta o disposto na NR 10, caracterizando uma não conformidade de cunho legal.
3) Definição 3.13.1 – tensão extra-baixa de proteção (PELV – Protective Extra Low Voltage) sistema elétrico no qual a tensão não pode exceder os valores de tensão extra-baixa sob condições normais e sob condições de falta única, excluindo faltas à terra em outros circuitos elétricos [1].
Comentário: Esta definição está diferente da adotada pela NBR 5410 [4], norma-referência para instalações em baixa tensão. Segundo a NBR 5410, Pelv trata-se de “Sistema de extra-baixa tensão, que não é eletricamente separado da terra, mas que preenche, de modo equivalente, todos os requisitos de um SELV (a ocorrência de uma única falta não resulta em risco de arco elétrico).
4) Nota a – A tensão nominal dos sistemas existentes em 220/380 V e 240/415 V deve transformar-se, futuramente, no valor recomendado de 230/400 V. Recomenda-se que o período de transição seja o menor possível e que não exceda o ano de 2003 [1].
Comentário: Este exemplo foi extraído de uma norma emitida em 2009. Como seu texto pode “recomendar” que o período de transição “não exceda 2003″?
5) Nota 1 – Recomenda-se que, em qualquer país, a razão entre duas tensões nominais adjacentes seja inferior a dois (nota referente a uma tabela que apresenta faixas de tensões nominais para sistemas trifásicos) [1].
Comentário: A Norma ABNT é aplicável no Brasil, pois em princípio foi elaborada por brasileiros e para brasileiros. Como ela pode conter recomendações para “qualquer país”?
6) 9.3 Cabos – Cabos com malhas com baixa resistência à flexão (também conhecidos como cabos “superflexíveis”) não devem ser utilizados, a menos que instalados em eletrodutos [5].
Comentário: Não há esta denominação de cabos no Brasil. A especificação correta de um cabo elétrico deve referenciar a norma que define suas características construtivas.
7) Anexo: “Por outro lado, é razoável para o proprietário de uma estação de bombeamento remota, pequena e bem segura, acionar a bomba com um motor do “tipo zona 2″, mesmo em zona 1, se a quantidade total de gás disponível para a explosão for pequena e os riscos para a vida e para a propriedade decorrente de tal explosão puderem ser desconsiderados” [5].
Comentário: Todos os profissionais que receberam treinamento em instalações em atmosferas potencialmente explosivas sabem que existem equipamentos apenas aprovados para uso em zona 2 e outros aprovados para uso em zona 1. Como os requisitos para equipamentos destinados a zona 2 são menos rigorosos, eles não podem ser instalados em zona 1. Porém, surpreendentemente, há um Anexo em todas as normas ABNT relacionadas a instalações Ex com a orientação acima. Pelo texto, entende-se ser “razoável” instalar equipamentos inadequados e consentir que haja uma explosão, se alguém achar (talvez usando uma “bola de cristal”) que a explosão vai ser “pequenininha”. Cabe atentar que explosões “pequenininhas” podem matar quem estiver efetuando manutenção ao lado do equipamento, ou causar um desastre ambiental pelo vazamento de produtos tóxicos ao meio ambiente.
O princípio de projeto das instalações Ex é que a seleção de equipamentos elétricos deve ser tal que eles não se comportem como fontes de ignição. Como pode ser “razoável” colocar tal texto em todas as normas desta série, apesar dos diversos comentários contrários recebidos pelas comissões na etapa de consul
ta nacional?
8) Consulta Nacional
Consta no site da ABNT que: “Durante a consulta nacional, qualquer interessado pode se manifestar, sem qualquer ônus, a fim de recomendar à comissão de estudo autora a aprovação do texto como apresentado; a aprovação do texto com sugestões; ou sua não aprovação, devendo, para tal, apresentar as objeções técnicas que justifiquem sua manifestação. Sendo assim, é muito importante contarmos com a sua opinião sobre o conteúdo dos projetos em consulta nacional, para que possamos ter normas brasileiras que realmente representem os interesses da sociedade, bem como possam ser plenamente aplicadas e gerar todos os benefícios inerentes à normalização. Participe, dando a sua contribuição – ela certamente ajudará na melhoria da qualidade de nossos documentos.”
Comentário: Segundo a IEC, se um projeto receber 25% dos votos de contrários à publicação, é considerado não aprovado, devendo ser reescrito e, posteriormente, reapresentado. Porém, consta que a consulta nacional da NBR IEC 60074-14: 2009 [6] recebeu 10 votos de reprovação e 7 votos de aprovação. Apesar disso, a comissão encaminhou o projeto para publicação.
Conclusões
Não temos espaço para apresentar aqui todas as situações de conflito nas normas brasileiras. Trouxemos apenas alguns exemplos para ilustrar as consequências de uma política de tradução ao pé da letra de normas criadas lá fora, sob o equivocado argumento de que “apenas assim o país poderia efetuar a adoção de normas internacionais”. A adoção de normas internacionais prevê o reconhecimento de situações em que a legislação local deva ser atendida [7].
A profusão de “notas de tradução” nas normas NBR IEC denota que o texto não foi fruto de um consenso sadio entre as partes visando ao atendimento aos nossos regulamentos técnicos, mas simplesmente uma tradução ao pé da letra. Conforme definido nas Diretivas ABNT Parte 2, item 6.5.2 [8], “notas” destinam-se apenas a complementar o texto, não podendo ser contrárias a ele. Esta Diretiva ABNT está harmonizada com a Diretiva ISO [9]. Porém, na prática, as “notas de tradução” são usadas para contrariar o texto da norma.
Percebemos, lamentavelmente, que há na ABNT uma defesa da tese de que se “uma norma internacional contiver um erro, a norma brasileira deverá manter este erro em seu texto, sendo feita uma notificação ao organismo emissor para que ele efetue a correção“.
Tal diretriz significa que de nada adianta a experiência dos membros da comissão: o erro será oficialmente inserido na norma brasileira sem questionamentos e assim repassado aos usuários da norma, enquanto a sociedade fica na expectativa de a IEC publicar uma errata. Quando vierem a publicar – se o fizerem – a comissão seria reconvocada para então emitir a mesma errata em português. Mas, como ficam as obras executadas até então?
Portanto, trata-se de uma interpretação equivocada, pois nem a norma internacional está exigindo isso [9], nem a Organização Mundial do Comércio, já que claramente é reconhecida a adoção “MOD” – conforme 4.3 do ISO Guide 21-1 [7], onde temos soberania para indicar na norma brasileira os desvios necessários para atendimento à nossa realidade.
Para a elaboração de uma norma ABNT, cabe à Comissão analisar todo o texto da norma apontada como referência, verificar a compatibilidade com nossos regulamentos técnicos, com nossa tecnologia, com nosso mercado e, apenas depois disso, então definir se o texto tomado como referência poderá ser adotado como uma norma brasileira IDT (idêntica) ou MOD (modificada) [7], de forma a apresentar à sociedade um texto harmonizado e coerente com nossa realidade.
É necessário que as entidades de classe promovam debates para estancar este processo danoso à nossa normalização técnica. Cerca de 50 anos atrás, o lema era “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”, agora a ABNT parece querer repetir a história mudando o lema para “o que é bom para a IEC basta ser copiado para o Brasil”.
Um trabalho mecânico de traduzir norma rebaixa os membros de comissão a uma posição passiva, o que vem provocando um esvaziamento generalizado. Parece que tal deliberação que reduziu a importância das comissões a meros tradutores pode ser resultante de um equivocado entendimento que as normas IEC estejam “prontas para uso” e que possam ser adotadas na íntegra, apesar de terem sido feitas por pessoas que talvez nem saibam onde fica o Brasil.
Dessa forma, textos traduzidos ao pé da letra, além de via de regra conflitarem com nossos regulamentos técnicos (que são requisitos legais e devem ser obrigatoriamente incluídos na seção “Referências Normativas”, conforme estipulado nas Diretivas ABNT Parte 2, item 6.2.2 [8]), confundem nossos profissionais e podem levar não só a situações desagradáveis entre contratados e contratantes, como a situações de risco aos usuários.
Referências
[1] NBR IEC 61892-2: 2009 – Unidades marítimas fixas e móveis – Instalações elétricas. Parte 2: Projeto de sistemas elétricos.
[2] NR-10 – Norma Regulamentadora 10 – Segurança em instalações e serviços em eletricidade. Ministério do Trabalho e Emprego, 2004.
[3] NBR IEC 60079-14: 2006 – Equipamentos elétricos para atmosferas explosivas – Parte 14: Instalação elétrica em áreas classificadas (exceto minas).
[4] NBR 5410: 2004 – Instalações elétricas de baixa tensão.
[5] NBR IEC 60079-14: 2009 – Atmosferas explosivas – Parte 14: Projeto, seleção e montagem de instalações elétricas.
[6] Ata de reunião especial (análise do resultado da Consulta Nacional de revisão da NBR IEC 60079-14:2006), CE-03:031.01, 27 e 28/01/2009.
[7] ISO/IEC Guide 21-1 – Regional or national adoption of International Standards and other International Deliverables – Part 1: Adoption of International Standards, 2005.
[8] Diretivas ABNT, Parte 2 – Regras para a estrutura e redação de Documentos Técnicos ABNT, 2007.
[9] ISO/IEC Directives Part 2 – Rules for the structure and drafting of International Standards, 2004.
*Estellito Rangel Jr. é instrutor de trei
namento sobre NR 10, coordenador técnico do ESW Brasil (evento do IEEE totalmente dedicado à segurança em eletricidade), coordenador geral do PCIC Brasil (congresso dedicado às instalações elétricas no segmento petróleo e gás) e auditor de instalações elétricas em áreas classificadas.
Uma resposta
Um artigo esclarecedor e que explica muitos dos problemas encontrados por aí. Parabéns à revista e ao eng. Estellito Junior pelo belo artigo.