Algumas palavras sobre sistemas de captação convencional e não convencional (ESE, DAS)

Por José Claudio de Oliveira e Silva*

O subsistema de captação tem a função de interceptar as descargas atmosféricas, as quais, sem ele, atingiriam diretamente a estrutura a ser protegida, incluindo equipamentos e/ou dispositivos eletroeletrônicos instalados no topo da estrutura. Os subsistemas de descida e de aterramento se encarregam de dar passagem à corrente da descarga para a terra, com o mínimo de danos possível à estrutura.

Quanto mais altas as estruturas, maior é a probabilidade delas próprias iniciarem descargas atmosféricas para as nuvens. As estruturas mais comuns, abaixo de 100 m, são, na maioria das vezes (90 % ou mais), atingidas por descargas negativas da nuvem para o solo [1]. Essas estruturas não esperam passivamente as descargas as atingirem. Influenciadas pelo campo elétrico intenso dos canais ionizados dos líderes[1] negativos, quando estes se aproxim am, descendo aos saltos, as estruturas no solo emitem líderes positivos que vão ao encontro dos líderes descendentes, participando ativamente do processo de conexão. Qualquer protuberância no solo (torres, postes, edificações, árvores, inclusive pessoas) sob a ação de um campo elétrico suficientemente elevado é capaz de produzir streamers e líderes ascendentes.

A foto da Figura 1, Saba et al.[2], mostra a participação ativa do subsistema de captação na emissão de líderes ascendentes e na conexão com o líder descendente que se aproxima. O que se vê na foto não é visível a olho nu. A descarga atmosférica propriamente não ocorreu ainda, mas irá ocorrer dentro de poucas centenas de microssegundos, quando os líderes ascendente e descendente se encontrarem.

Figura 1 – Emissões de líderes ascendentes a partir dos subsistemas de captação de dois prédios de um condomínio residencial na cidade de São Paulo, filmadas através de câmera de alta velocidade em fevereiro de 2014. Imagem cedida pelo INPE, do projeto de pesquisa “P1P2”, em que a distância de atração (striking distance) envolvendo estruturas comuns, de alturas moderadas, estão sendo estudadas através do monitoramento e registro de diversos parâmetros das descargas, tais como medições diretas de corrente, campo elétrico, Raios-X e imagens de alta velocidade [2].

[1] Avalanche eletrônica, streamers e líderes fazem parte do processo evolutivo da ruptura do dielétrico num meio gasoso [3]. Streamers são canais ionizados que se desenvolvem a partir de uma avalanche de elétrons devido ao campo elétrico intenso na vizinhança de um eletrodo. Se o gap (entre eletrodos) for pequeno, a ruptura do dielétrico pode ocorrer de uma transição streamer-arco. Se o gap for grande e o campo elétrico suficiente para manter a criação de streamers, estes vão se formando como ramificações em torno de um canal principal, que vai se alongando (propagando) na direção do campo. A corrente elétrica dos streamers pode aquecer o canal principal a ponto de dar início à um processo de ionização térmica, reforçando a ionização e evoluindo para uma descarga mais robusta, um líder. Os líderes (ou os streamers, somente, em caso de estruturas muito baixas) precedem as descargas atmosféricas, criando as condições e traçando o caminho para elas

 

O líder ascendente que consegue fazer a conexão com o líder descendente é denominado LAC (líder ascendente conectivo) e aqueles que não conseguem fazer a conexão são denominados LANC (líder ascendente não conectivo). Em inglês: UCL (upward connecting leader) e UUL (unconnected upward leader). No caso dos LANC, esses se recolhem (suas cargas elétricas retornam ao ponto de origem) rapidamente devido ao colapso do campo elétrico quando o líder descendente atinge outro ponto de contato.

Os prédios da Figura 1 possuem SPDA externo adequado. As ferragens estruturais são utilizadas como condutores de descida e seus subsistemas de captação são convencionais (hastes e condutores interligados, e ligados às ferragens). As hastes no centro de cada um dos prédios são relativamente altas e interceptam a maioria das descargas atmosféricas que os atingem. Há, porém, registros de LANC partindo das quinas desses prédios e até LAC, em alguns casos. Isso não é um problema, uma vez que as bordas e quinas dos prédios estão devidamente protegidas por condutores do subsistema de captação.

Há registro de um líder partindo de uma das hastes, antes do líder da outra haste, dando sinais que vai fazer a conexão, mas, de repente, o segundo líder acelera mais, faz a conexão e o primeiro se recolhe. O interessante dessa narrativa é mostrar que há uma “dança” de líderes emitidos pela estrutura no solo, orquestrados pela aproximação do líder descendente, o qual, até certa altura parece ignorar a existência das estruturas logo abaixo. Ao se aproximar um pouco mais, um dos líderes ascendentes, sob forte efeito do campo elétrico, sofrerá maior aceleração e vencerá a competição, efetuando a conexão. Nesse instante, a descarga atmosférica, tal como a percebemos, se dará.

O líder descendente não “enxerga” as estruturas como nós as enxergamos. As geometrias das estruturas, para o líder, são deformadas em função da configuração do campo elétrico sobre as estruturas. Essas deformações são extremas quando os líderes ascendentes são emitidos. É como se um líder alongasse a estrutura na direção de sua propagação. Segue então uma observação importante sobre SPDA: um bom subsistema de captação é aquele que tem melhor desempenho na emissão de LAC com relação às outras partes da estrutura. É uma competição que os elementos de captação têm que ganhar, “chamando” para si as descargas e impedindo-as de atingirem a estrutura a ser protegida. O líder ascendente que der o salto final em direção à ponta do líder descendente (the final jump) define o ponto de impacto da descarga, que é o ponto de onde ele partiu.

Daí a importância do correto posicionamento dos elementos de captação. Como o fenômeno é complexo e os modelos mais avançados baseados na física da conexão (em permanente desenvolvimento), não são ainda acessíveis, os projetistas devem lançar mão de procedimentos recomendados por norma para se definir o posicionamento dos captores, que sejam confiáveis e de aplicação relativamente simples, ou seja, métodos seguros e práticos. No Brasil, esses métodos são os recomendados na norma ABNT NBR 5419-3:2015, baseada na norma internacional IEC 62305-3, que são: ângulo de proteção, esfera rolante e malhas.

Figura 2 – Métodos especificados na norma ABNT NBR 5419-3:2015 para definir o posicionamento dos componentes de captação: ângulo de proteção, esfera rolante e malhas (figura adaptada de Becerra [6]).

Esses métodos são empíricos, mas não divorciados de métodos científicos, tendo sido construídos ao longo de muitos anos. Conforme Uman e Rakov [7], a justificativa teórica para a abordagem convencional é um tanto imperfeita, em parte devido ao conhecimento incompleto que temos sobre o processo de conexão entre as descargas e as estruturas no solo. A principal justificativa para o uso dessa abordagem, porém, está no seu histórico de sucesso em prevenir ou minimizar danos às estruturas. Existem atualmente modelos baseados na física da descarga, como o SLIM (Becerra e Cooray, [8][9]), mas que são ainda bastante complexos e computacionalmente pesados para aplicação prática em engenharia.

Existem dispositivos ou sistemas de proteção comerciais, denominados não convencionais, que se dividem em duas categorias principais: o DAS (dissipation array system), também conhecido por CTS (charge transfer system), e o ESE (early streamer emission).

O DAS, alegam seus proponentes, fabricantes e representantes, é capaz de evitar a ocorrência de descargas atmosféricas nas estruturas sobre as quais o sistema é instalado. A ideia se baseia na geração de cargas elétricas no espaço circunvizinho, através de arranjos metálicos com grande quantidade de pontas, cargas essas que irão se deslocar para cima, dissipando silenciosamente as cargas das nuvens.

O ESSE, alegam seus proponentes, fabricantes e representantes, é uma espécie de captor com raio de ação muito maior do que o de uma haste captora convencional. Esse captor possui mecanismos de disparo de descargas que irão dar início a streamers emitidos antes daqueles emitidos por captores convencionais, propagando, conforme alegam, a maiores distâncias. A intenção é aumentar as chances de ocorrência de LAC a partir desses dispositivos.

A Figura 3 apresenta um exemplo de subsistema de captação baseado no ângulo de proteção da norma ABNT NBR 5419-3:2015, para nível de proteção III, e uma possível solução com dispositivo ESE, conforme raio de proteção indicado no site de um fornecedor desse tipo de dispositivo. Os prédios têm dimensões 30 x 30 x 20 m. O subsistema de captação, segundo a norma, utilizou hastes de 2,5 m nas quinas e uma haste de 6 m no centro do prédio. A outra solução tem apenas um dispositivo ESE instalado numa haste de 2 m no centro.

Figura 3 – Exemplo de subsistema de captação baseado no ângulo de proteção da ABNT NBR 5419-3:2015 (esquerda) e uma solução com dispositivo ESE (direita). No caso do ESE, o raio de atração no nível do solo não é claramente definido.

As características especiais alegadas para os sistemas não convencionais apresentados acima não são reconhecidas pela comunidade científica na área de proteção contra descargas atmosféricas e de física de descargas, assim como por entidades de normalização importantes, tais como IEC, NFPA e CIGRÉ. Diversos artigos científicos foram publicados a esse respeito. Para citar alguns: [7][10][11][12][13][14].

A comissão de estudos CE-03:064.10, responsável pela elaboração da norma ABNT NBR 5419:2015, Partes 1 a 4, baseada na série IEC 62305, está alinhada à posição do ICLP (International Conference on Lightning Protection) em não aprovar o uso dos sistemas de proteção não convencionais, com base nas propriedades não comprovadas de aumento do raio de proteção ou de eliminação de descargas atmosféricas.

Nota: O ICLP é um organismo tecnocientífico com participação de eminentes cientistas e especialistas de vários países, sendo vários deles membros do Technical Committee TC‑81 (Lightning protection), da IEC.

Outras partes metálicas da estrutura que atendam aos requisitos especificados na ABNT NBR 5419‑3:2015 para atuar como elemento de captação podem fazer parte do subsistema de captação (componentes naturais), desde que atendam, também, aos métodos de posicionamento especificados na referida norma. Um dispositivo que “elimine” a possibilidade de queda de descarga na estrutura a ser protegida ou que tenha um alcance de interceptação, além daqueles previstos na norma, não podem ser utilizados, levando-se em conta tais características, pois o SPDA resultante não estaria em conformidade com a norma.

A CE-03:064.10 entende que outras normas, específicas para dispositivos e/ou sistemas não convencionais de proteção, não podem ser usadas para validar ou justificar o uso desses dispositivos e/ou sistemas, em situações que estejam dentro do escopo da norma ABNT NBR 5419:2015, se estiverem em conflito com os requisitos da norma. A comissão também entende que não há o menor sentido em argumentar que esses dispositivos e/ou sistemas podem ser utilizados, com as características especiais que lhes são atribuídas, pelo fato da ABNT NBR 5419:2015 não os proibir explicitamente. O papel da norma é o de recomendar o projeto, a construção e a manutenção da PDA (proteção contra descargas atmosféricas), conforme seus procedimentos e métodos, os quais, como mencionado acima, se justificam pelo histórico de sucesso na proteção de estruturas e seres vivos.

Referências

  1. Technical Brochure TB 549; Lightning parameters for engineering applications; CIGRÉ; 2013.
  2. Saba M.F.M., Naccarato K., Paiva A.R., Schumann C., Cooray V., Piantini A., Ferro A.S., Custódio D.M., Diendorfer G., Silva J.C.O.; The study of lightning strikes to common buildings in Brazil; 33rd International Conference on Lightning Protection (ICLP); Setembro de 2016; Estoril, Portugal.
  3. Cooray V. (Editor); The Lightning Flash (Chapter 3: Mechanism of electrical discharges); IEE; 2003.
  4. Norma ABNT NBR 5419-3:2015; Proteção contra descargas atmosféricas – Parte 3: Danos físicos a estruturas e perigos à vida.
  5. Norma IEC 62305-3:2010; Protection against lightning – Part 3: Physical damage to structures and life hazard.
  6. Becerra M.; On the attachment of lightning flashes to grounded structures; Doctoral Dissertation; Uppsala University; 2008.
  7. Uman M.A., Rakov, V.A.; A critical review of nonconventional approaches to lightning protection; Bulletin of the American Meteorological Society; pp. 1809 – 1820; December 2002.
  8. Becerra M., Cooray V.; A simplified physical model to determine the lightning upward connecting leader inception; IEEE Transactions on Power Delivery, 21, 2, pp. 897 – 908; 2006.
  9. Becerra M., Cooray V.; A self-consistent upward leader propagation model; Journal of Physics D: Applied Physics, Vol. 39, No. 16, pp. 3708 – 3715; 2006.
  10. Cooray V. (on behalf of CIGRÉ Working Group C4.405); Lightning interception – Non conventional lightning protection systems; Electra No. 258; 2011.
  11. Hartono Z.A., Robiah I.; A review of studies on Early Streamer Emission and Charge Transfer System conducted in Malaysia; 17th International Zurich Symposium on Electromagnetic Compatibility; 2006.
  12. Becerra M., Cooray V.; Laboratory experiments cannot be utilized to justify the action of early streamer emission terminals; Journal of Physics D: Applied Physics; No. 41; 8 pp.; 2008.
  13. ICLP website: http://www.iclp-centre.org/index.html (ver “ESE Issue”).
  14. NLSI (National Lightning Safety Institute) website: http://lightningsafety.com/ (ver Seção 5: Structural Lightning Safety / 5.4 Air Terminals).
  • José Claudio de Oliveira e Silva é membro da CE-03:064.10 ([email protected], www.aptemc.com.br).

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