Primeiros eventos e definição de compatibilidade eletromagnética
Embora relatos de interferência eletromagnética (IEM) existam desde os primórdios das comunicações de rádio e telégrafo, as preocupações com IEM ganharam maior importância após o desenvolvimento dos transistores na década de 1950 e dos componentes de alta densidade, tais como os circuitos integrados na década de 1960. Nota-se que estes apresentam níveis de imunidade à IEM menores que os componentes eletromecânicos e válvulas, por exemplo. Devido a esses motivos, verificou-se a necessidade da utilização de medidas de controle para as emissões eletromagnéticas e das características de operações, tais como faixas de frequências de operação etc. [1].
A compatibilidade eletromagnética (CEM) refere-se à capacidade de um equipamento ou sistema de funcionar satisfatoriamente em seu ambiente eletromagnético sem introduzir distúrbios eletromagnéticos que possam comprometer a operação e a segurança de qualquer outro equipamento naquele ambiente. Os mecanismos de controle de IEM têm como base dois aspectos: a emissão e a imunidade eletromagnética. Emissão refere-se à contribuição de sinais conduzidos e radiados que possam causar interferência de um produto, ou seja, a geração de energia eletromagnética por fontes, de maneira acidental ou deliberada, e sua liberação para o meio. Imunidade é a capacidade de um equipamento de operar satisfatoriamente, sem degradação, na presença dos sinais resultantes das emissões (ruído) [2]. Em outras palavras, atinge-se a compatibilidade eletromagnética quando os níveis de emissão e imunidade são controlados de modo que os níveis de imunidade dos dispositivos, dos equipamentos e sistemas, em qualquer localização, não sejam excedidos. Deste modo, a busca da CEM tem como função primária garantir a segurança e confiabilidade dos sistemas, nos diversos campos de aplicação e nos mais variados ambientes eletromagnéticos.
Base normativa de CEM e sua evolução
Em 1934, a International Electrotechnical Commission (IEC) criou um comitê especial para abordar problemas emergentes de IEM, chamado de International Special Committee on Radio Interference (CISPR), tendo este publicado diversos documentos com requisitos, técnicas de medição e limites de emissão de sinais conduzidos e radiados que passaram a ser utilizados em diversos países da Europa. De maneira semelhante, a Federal Communications Commission (FCC), a agência independente do Governo dos Estados Unidos, que regula as comunicações nesse país, publicou, em 1979, uma regulamentação geral para todos os dispositivos eletrônicos, seguindo os limites recomendados pela CISPR.
Pode-se citar ainda as instituições militares norte-americanas que adotavam limites de emissão eletromagnética para os sistemas eletrônicos desde a década de 1960, tendo publicado a norma MIL-STD-461, “Military Standard: Electromagnetic Interference Characteristics Requirements For Equipment“, de forma a integrar a compatibilidade eletromagnética no estágio de pesquisa e desenvolvimento para tecnologia de comunicações de defesa [3].
Dentro da IEC, destacam-se os comitês: Comitê Técnico 77 (TC77) e a CISPR (Comitê Internacional Especial de Perturbações Radioelétricas), ambos responsáveis por elaboração de normas gerais de CEM; e o Comitê Consultivo em Compatibilidade eletromagnética (ACEC), que garante a coordenação entre os comitês especiais de CEM com outras organizações externas e guia outros comitês de produtos no desenvolvimento de normas específica [4]. As normas de CEM estão divididas em duas grandes famílias: IEC 61000 [5] e CISPR 16 [6], cujas estruturas básicas das duas famílias são apresentadas na Tabela 1 e na Tabela 2, respectivamente.
Além das duas famílias anteriormente citadas, diversos comitês especiais são responsáveis pela definição dos requisitos específicos e formas de aplicação das normas para aplicações específicas que utilizam sistemas elétricos e eletrônicos. Pode-se observar na Tabela 3 os principais comitês especiais da IEC e suas respectivas normas associadas.
Resiliência eletromagnética: segurança funcional aplicada aos fenômenos eletromagnéticos e base normativa
Os sistemas relacionados à segurança devem se manter seguros por todo seu ciclo de vida. Neste contexto, a segurança funcional tem como objetivo garantir que riscos provenientes de falhas aleatórias e sistemáticas em sistemas elétricos e eletrônicos sejam reduzidos a níveis toleráveis e que seus impactos, em caso de ocorrência, sejam minimizados. Como todos os sistemas elétricos, eletrônicos ou eletrônicos programáveis (E/E/PE) estão sujeitos a serem afetados por distúrbios eletromagnéticos, sendo possível, por esse motivo, a ocorrência de erros ou falhas que podem afetar seu bom funcionamento. Faz-se, assim, necessária a adoção de práticas relacionadas ao gerenciamento de riscos funcionais em relação aos fenômenos eletromagnéticos, sendo esta chamada, de forma mais sucinta, de resiliência eletromagnética [8].
Os procedimentos adotados, visando atingir a resiliência eletromagnética, têm como base diversas referências na literatura, podendo-se mencionar, inicialmente, as recomendações das normas IEC 61508 [9] e IEC 61000-1-2 [10].
A norma IEC 61508 é a publicação básica atual relacionada à segurança funcional de equipamentos elétricos, eletrônicos e eletrônicos programáveis (E/E/PE), apresentando as recomendações gerais para obtenção de segurança funcional. Nota-se, no entanto, que esta não apresenta requisitos específicos para o tratamento dos efeitos dos distúrbios eletromagnéticos. Para esse propósito, a norma IEC 61000-1-2 fornece um guia para a avaliação dos efeitos dos ambientes eletromagnéticos nos sistemas elétricos relacionados à segurança. Ressalta-se que o processo para obtenção segurança funcional considerando os aspectos de CEM envolve todo o ciclo de vida do sistema ou equipamento, desde a concepção do projeto até o seu descomissionamento. Esse ciclo e a relação entre as principais referências normativas são apresentados na Figura 1.
Deve-se, ainda, mencionar a recém-publicada norma IEEE 1848 [11] que fornece um conjunto de métodos práticos para auxiliar no gerenciamento dos níveis de riscos, devido a distúrbios eletromagnéticos, por todo o ciclo de vida dos equipamentos e sistemas eletrônicos. Essa publicação deverá impactar diversas aplicações específicas de equipamentos elétricos e eletrônicos que deverão abordar as técnicas discutidas na norma citada. As técnicas e medidas apontadas na norma IEEE 1848 englobam a aplicação de técnicas desde o projeto, como aplicação de princípios de segregação, redundância e diversidade e de métodos de correção de erro, passando pelos ciclos de verificação e validação, e garantindo a segurança funcional durante todo o ciclo de vida do sistema.
Conclusões
Este artigo apresenta uma breve introdução aos tópicos gerais relacionados aos conceitos de compatibilidade e de resiliência eletromagnéticas em sistemas elétricos e eletrônicos. Observa-se que a preocupação com os tópicos de interferência eletromagnética é bastante antiga (final do século XIX e início do século XX), assim como a verificação da necessidade de adoção de procedimentos e requisitos descritos em normas internacionais (início na década de 1930). As duas grandes famílias de normas, IEC 61000 e CISPR 16, são as publicações básicas sobre CEM da IEC e especificam as condições gerais ou requisitos necessários para atingir a compatibilidade eletromagnética. Os tópicos gerais sobre resiliência eletromagnética, também, são abordados, ressaltando-se a preocupação dos efeitos resultantes dos fenômenos eletromagnéticos sobre os sistemas elétricos e eletrônicos relacionados à segurança, sendo consideradas as normas IEC 61508, IEC 61000-1-2 e IEEE 1848.
Referências
[1] C. R. Paul, Introduction to Electromagnetic Compatibility, 2nd ed., Wiley-Interscience, 2006, p. 1016.
[2] IEC 60050-161, “International Electrotechnical Vocabulary (IEV) – Part 161: Electromagnetic compatibility”, 1.0 ed., International Electrotechnical Commission, 1990, p. 73
[3] MIL-STD-461G, “Military Standard: Electromagnetic Interference Characteristics Requirements For Equipment”, US Military Specs/Standards/Handbooks, 2015
[4] “IEC EMC Players,” International Electrotechnical Commission, [Online]. Disponível em: https:// http://pubweb2.iec.ch/emc/iec_emc/iec_emc_players_intro.htm. Acesso em 1-12-2021.
[5] “IEC 61000, “Electromagnetic compatibility (EMC)”,” International Electrotechnical Commission, 2020
[6] CISPR 16, “Specification for radio disturbance and immunity measuring apparatus and methods”, International Electrotechnical Commission, 2019.
[7] “Basic EMC publications”, [Online]. Disponível em: http://pubweb2.iec.ch/emc/basic_emc/basic_61000.htm. Acesso em 7-12-2021.
[8] K. Armstrong e A. Duffy, “Reducing the Functional Safety Risks (and other be caused by EMI – new IEEE Standard 1848,” IEEE Letters on Electromagnetic Compatibility Practice and Applications (Early Access), pp. 1-9, 2020.
[9] IEC 61508, “Functional safety of electrical/electronic/programmable electronic safety-related systems – Parts 1 to 7”, International Electrotechnical Commission, 2010.
[10] IEC 61000-1-2, “Electromagnetic compatibility (EMC) – Part 1-2: General – Methodology for the achievement of functional safety of electrical and electronic systems including equipment with regard to electromagnetic phenomena”, 1.0 ed., International Electrotechnical Commission, 2016.
[11] Institute of Electrical and Electronics Engineers, “IEEE Std 1848, “Techniques & Measures to Manage Functional Safety and Other Risks With Regard to Electromagnetic Disturbances”,” IEEE, 2020.
Autores:
Por Carlos Antônio Sartori, engenheiro eletricista, Mestre e Doutor pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo -EPUSP e estágios de pós-doutorado no Institut National Polytechnique de Grenoble (ENSIEG-INPG/LEG) e na École Centrale de Lyon (ECL-UMR 5005), atuando em ambas como Professor Convidado. Atualmente, é Professor Convidado do Programa de Pós-graduação do Departamento de Energia e Automação Elétricas da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo PEA/EPUSP, Engenheiro-Tecnologista Sênior III (Aposentado) e Professor do Programa de Pós-graduação do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares IPEN/CNEN-SP, e Professor Associado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Por Acássio Matheus Roque, engenheiro eletricista pela Universidade de São Paulo com formação complementar em Controle e Automação (Diploma de Estudos Especiais concedido pela Escola de Engenharia de São Carlos – EESC), tendo realizado intercâmbio na Universidade do Porto em Portugal, no curso de Engenharia Eletrotécnica. É mestrando do Programa de Pós-graduação do Departamento de Energia e Automação Elétricas da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo PEA/EPUSP. Atualmente, é Especialista em Desenvolvimento de Tecnologia Nuclear e Defesa (Engenheiro Eletrônico) na empresa Amazônia Azul Tecnologias de Defesa S.A.