Experiências europeias de políticas para promoção de redes inteligentes e desafios para o Brasil

Edição 118 – Novembro de 2015
Artigo: Smart Grid
Por Nivalde de Castro, Lucca Zamboni e Roberto Brandão*

O Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) vem desenvolvendo no âmbito do Programa de P&D da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) para a EDP Brasil o projeto “Avaliação de políticas e ações de incentivo às inovações tecnológicas no setor elétrico: análise da experiência internacional e propostas para o Brasil”. Após seis meses de estudos e enquadramento teórico do tema, foram realizadas visitas e reuniões técnicas às agências reguladores, principais players (On, EDF, ENEL e EDP) e centros de pesquisas na Alemanha, França, Itália e Portugal, culminando com o seminário internacional promovido pelo Gesel e ERSE (Regulador de Portugal) no dia 12 de junho em Lisboa. Parte dos resultados mais gerais e estratégicos destas atividades está sistematizada neste artigo. 

 

 

Neste sentido, o artigo está dividido em três partes, além desta breve e sintética introdução. A primeira parte apresenta um enquadramento conceitual lato sensu e dos benefícios das redes inteligentes. Na segunda parte é analisada a experiência europeia com foco nos casos italiano, francês e alemão. A terceira parte examina a experiência brasileira. Por fim, são sistematizadas as conclusões preliminares, destacando-se acima de tudo a importância da escala e de sinais regulatórios como elementos definidores de avanço das redes inteligentes nos países europeus analisados.

I Enquadramento conceitual 

As redes inteligentes compreendem um conjunto de inovações nas redes elétricas, que implicam no aumento do grau de automação e na introdução de novas funcionalidades, sobretudo, relativas ao atendimento direto ao consumidor. A difusão das novas tecnologias associadas às redes inteligentes permite, entre outras coisas:

                    i.         Redução de custos O&M (perdas, fraudes, leitura etc.);

                   ii.        Gestão mais eficiente das infraestruturas;

                 iii.         Melhoria da segurança operativa;

                 iv.         Flexibilização da demanda com consumidores mais participativos;

                  v.         Integração de geração distribuída;

                 vi.        Serviços de valor adicionado ao consumidor final (acesso online ao consumo, tarifação dinâmica, automação doméstica etc.).

Porém, como o segmento de distribuição de energia elétrica está subordinado às regras de regulação e é capital intensivo, o processo de inovação relacionado às redes inteligentes e sua velocidade de difusão tendem a estar condicionados:

                    i.         À estrutura do mercado e;

                   ii.        Ao marco regulatório, notadamente à regulação tarifária. 

No que diz respeito à estrutura do mercado, a escala das empresas, medida pelo número de consumidores, é um fator preponderante. Em países em que as redes elétricas estão pulverizadas em grande número de empresas, a viabilidade econômica dos investimentos em automação e em instalação de medidores inteligentes tende a ser questionável, dadas as notórias economias de escala das atividades relacionadas à automação. A Alemanha, que tem mais de 900 empresas de distribuição, é um exemplo de país em que a economicidade das redes inteligentes – sobretudo de medidores inteligentes – é duvidosa. O contrário ocorre em países como a Itália e França, que contam com uma empresa distribuidora dominante, capaz de explorar os ganhos relativos à escala.

A regulação também tem um papel importante para a disseminação de redes inteligentes. Os investimentos em redes inteligentes têm características distintas dos investimentos tradicionais na rede de distribuição. Em primeiro lugar, investimentos em redes inteligentes envolvem gastos substanciais em rubricas que a regulação costuma considerar como custos operacionais, como é o caso do desenvolvimento e manutenção de sistemas informatizados. Este tipo de investimento, grosso modo, não costuma ser remunerado na tarifa, dado que a rentabilidade das empresas distribuidoras advém basicamente da aplicação do WACC sobre os ativos fixos da concessão. Além disso, estes investimentos não se enquadram bem no conceito de investimentos prudentes, os únicos reconhecidos pela regulação por incentivos, uma vez que envolvem tecnologias ainda não maduras e por isso têm riscos de obsolescência e de não apresentarem na prática todos os benefícios esperados. Finalmente, tais investimentos podem implicar na substituição de ativos ainda não depreciados totalmente, algo normalmente penalizado pela regulação tarifária.

II – Experiência europeia

As diretivas da Comissão Europeia são no sentido de apoiar a disseminação de redes inteligentes. Como o panorama europeu é bastante heterogêneo, com países em estágios de desenvolvimento distintos no que diz respeito às redes inteligentes. No caso específico dos medidores inteligentes, a sua adoção depende de cada país e é feita com base em uma análise de custo-benefício da implantação da tecnologia. Neste sentido, algumas nações já massificaram a tecnologia dos medidores de consumidores residenciais, enquanto outros países planejam um roll out de medidores no curto/médio prazo e outros ainda não têm planos concretos com este propósito. 

Nestes termos, as políticas de incentivo à difusão das redes inteligentes e as motivações para a sua adoção variam de acordo com as especificidades de cada país. Vejamos alguns exemplos significativos no continente europeu.

O caso italiano

A Itália teve uma das primeiras experiências bem-sucedidas de massificação da implantação de medidores inteligentes. Tratou-se de uma iniciativa própria e independente da Enel. Foi uma experiência anterior às políticas de incentivo às redes inteligentes europeias e mesmo italianas. Os estudos iniciais com a tecnologia de medição inteligente datam de 1996 e o roll out ocorreu entre 2001 e 2007, com investimento de 2,1 bilhões de euros, possibilitando a instalação de 32 milhões de medidores. 

A agência reguladora não reconheceu inicialmente os investimentos do projeto de redes inteligentes na base de remuneração da empresa, o que equivale a dizer que o investimento realizado não foi incorporado na remuneração da Enel e, consequentemente, não implicou em aumento da tarifa. A avaliação da Enel ao decidir pela implantação do projeto foi de que a redução de custos proporcionada pela automação e pelo combate mais eficiente a perdas não técnicas seriam suficientes para remunerar o investimento. Segundo a empresa, os benefícios derivados da maior eficiência e redução das perdas foram de 499 milhões de euros ao ano, com custos relacionados às novas tecnologias e processos de 67,5 milhões de euros por ano, determinando uma redução líquida de custos tangíveis de 431,5 milhões de euros por ano.

A recuperação dos investimentos foi possível devido, em grande medida, às características do modelo tarifário italiano, em que a empresa captura integralmente eventuais ganhos de eficiência durante o primeiro ciclo tarifário (quatro anos), mas retém no ciclo seguinte metade dos ganhos verificados, só havendo o repasse integral ao consumidor do acréscimo de eficiência ao final de oito anos. Apenas com as economias apropriadas pela Enel durante um ciclo tarifário não teria sido possível ter o retorno sobre o capital investido com o projeto de redes inteligentes. Mas com a apropriação de ganhos por mais quatro anos, o retorno se mostrou positivo e os investimentos foram realizados transformando a Itália em uma experiência exitosa.

A política governamental de incentivo às redes inteligentes e a regulação tarifária específica são posteriores ao projeto de massificação dos medidores inteligentes da Enel. A partir de 2007, na esteira do sucesso do projeto da Enel, os smart meters passaram a ser obrigatórios para todas as distribuidoras. A regulação tarifária foi alterada para incluir incentivos aos investimentos em redes inteligentes e as demais distribuidoras passaram a ter metas de implantação. 

O problema que a nova diretriz governamental procurava endereçar era o das pequenas distribuidoras, uma vez que a Enel já havia, por sua conta e risco, implantado o seu projeto. Na Itália, a Enel é responsável por cerca de 85% do mercado de distribuição, enquanto os outros 15% estão pulverizados em cerca de 100 distribuidoras. As economias percebidas pela Enel em seu projeto de redes inteligentes decorriam em grande medida do tamanho do seu mercado, pois a parte dos custos com o novo projeto, notadamente, os custos com desenvolvimento e manutenção de sistemas, estão sujeitos a grandes economias de escala. Com isso, as economias de custos obtidas em distribuidoras menores não se mostravam suficientes para custear sozinhas os investimentos necessários para universalizar o novo padrão de medidores. A solução regulatória adotada foi, a partir de 2007, incorporar na base de remuneração das distribuidoras os investimentos realizados em redes inteligentes como contrapartida das metas de universalização dos medidores inteligentes.

O caso francês

Na França há uma grande empresa de distribuição, a ERDF, responsável por 95% da distribuição nacional, que desenvolveu com sucesso projetos-piloto com cerca de 250 mil medidores. Com base nestas experiências, o governo francês tomou recentemente a decisão de massificar esta inovação tecnológica para todos os clientes. 

Na França, a exemplo do que ocorre na Itália, os medidores pertencem à distribuidora. Da mesma forma, a EDRF avaliou, dada sua escala de mercado, que a nova tecnologia se paga sozinha com base nos benefícios tangíveis para a distribuidora (redução de custos) serem suficientes para tornar a implantação economicamente viável.

Ainda assim, foi preciso desenhar uma regulação econômica nova para viabilizar o investimento de 4,5 bilhões de euros. Seguindo o exemplo do regulador italiano, os medidores novos não farão parte da base de ativos regulatória e com isso sua implantação não implicará em aumento de tarifas. Em compensação, as reduções nos custos da distribuidora advindas da difusão em larga escala desta nova tecnologia não serão repassadas aos consumidores enquanto o investimento original não for pago. A principal vantagem de curto prazo para os consumidores será o acesso a uma plataforma tecnológica mais avançada e a produtos e serviços de valor adicionado que serão viabilizados pelo medidor inteligente.

 

O caso alemão

A atual política alemã consiste em investir no desenvolvimento tecnológico a fim de ampliar a oferta de soluções para smart grid, mas não na demanda para produtos relacionados. Não há, por ora, a intenção de induzir a massificação dos medidores inteligentes e a causa central desta decisão está na avaliação de que a nova tecnologia tem custos que não justificam os benefícios, mesmo computando-se benefícios não tangíveis, como o estímulo ao uso racional da energia, potencial resposta da demanda a preços etc. 

A prioridade do governo alemão no que diz respeito às redes inteligentes é a melhoria na automação da rede convencional de transmissão e distribuição. O regulador alemão reconhece que o aumento no grau de automação na rede requer modificações do sinal regulatório. Hoje a regulação incentiva investimentos em ativos fixos da concessão (equipamentos) em detrimento de investimentos classificadas como custos operacionais, como é o caso de gastos em sistemas e automação, o que retira o incentivo a estes últimos, sobretudo para distribuidoras pequenas, onde os ganhos tangíveis com a automação são menores. O tratamento tarifário da substituição de ativos ainda não totalmente depreciados também é uma questão.

A estrutura do mercado alemão no segmento de distribuição de energia elétrica e algumas das características do mercado alemão parecem ser as responsáveis pelo custo-benefício desfavorável dos medidores inteligentes. Em primeiro lugar, o mercado de distribuição alemão é altamente pulverizado, totalizando mais de 900 distribuidoras, o que pr

ovavelmente explica o alto custo da automatização.   No entanto, parte da regulação da distribuição é de caráter municipal, o que complica muito a adoção de sinais regulatórios de caráter nacional e, nestes termos, aumenta o custo de transação para qualquer mudança regulatória mais abrangente. 

Outro fator de limitação é o fato do medidor não pertencer necessariamente à distribuidora, pois os serviços de medição são considerados como competitivos e podem ser exercidos por outras empresas. No contexto alemão, as soluções de telecomunicação adotadas na Itália e na França, em que a comunicação com o medidor é feita pela distribuidora, não são viáveis. Por essa razão, desenhou-se um modelo de medição inteligente em que a comunicação entre o medidor e o servidor de dados seria feita por uma empresa de telecomunicação/informática sem participação da distribuidora. A solução desenhada é cara e os benefícios são duvidosos.

Portanto, os benefícios tangíveis para a distribuidora, que viabilizaram o roll out de medidores inteligentes e os investimentos associados em modernização da rede de distribuição na Itália e na França, simplesmente não ocorrem na Alemanha, levando a um diagnóstico de custo-benefício desfavorável.

 

III – A experiência brasileira

No Brasil, o incentivo às redes inteligentes está restrito ao financiamento de projetos piloto com recursos a fundo perdido do P&D da Aneel e ao Programa Inova Energia por meio de um pacote de financiamentos envolvendo, além da Aneel, o BNDES e Finep, com possibilidade de ser utilizado para projetos de redes inteligentes. 

A decisão de investir em redes inteligentes compete exclusivamente às distribuidoras e não foi introduzido até o momento nenhum mecanismo tarifário para estimular estes investimentos. As principais motivações para a implantação de redes inteligentes no Brasil parecem ser o combate às perdas não técnicas e a melhoria na qualidade do serviço, que podem justificar investimentos em inteligência de rede, bem como a instalação e a substituição dos medidores tradicionais nos consumidores finais em algumas distribuidoras com maior escala. Porém, para distribuidoras que possuem áreas de concessão com reduzidas perdas comerciais e/ou qualidade de serviço satisfatória, a atratividade dos investimentos pode ser questionável.

Entretanto, os custos de implantação das redes inteligentes no Brasil tendem a ser elevados. As soluções de comunicação com o medidor via PLC não têm apresentado um desempenho satisfatório nas condições das redes brasileiras e mesmo o uso dos serviços de dados das empresas de telecomunicação tem se mostrado pouco eficiente. A solu&cc

edil;ão técnica recomendável seria a montagem de uma rede de comunicação dedicada usando rádio ou soluções híbridas, mas todas com custo de implantação provavelmente muito elevado.

Outro problema é que a vida útil esperada dos medidores inteligentes atuais é muito curta, de oito anos apenas, em função das condições climáticas a que estes equipamentos são submetidos. Esta restrição sugere a necessidade de desenvolvimento de medidores eletrônicos mais robustos para a operação nas condições brasileiras. Além disso, a pulverização do mercado de distribuição (64 distribuidoras) tende a encarecer todo o tipo de solução de automação, na medida em que os custos dos sistemas de informática teriam de ser remunerados, com uma base de clientes que em muitos casos é estreita. Finalmente, o modelo regulatório não induz investimentos em redes inteligentes, não havendo mecanismo de mitigar o risco acrescido de investimentos em tecnologias ainda não maduras e, sobretudo, não existindo mecanismo para remunerar investimentos em automação que não impliquem em compra de ativos elétricos. A redução de custos operacionais também é duvidosa: por um lado, reduzimos custos com leituristas e deslocamentos para cortes e restabelecimento do sistema, mas agregamos custos para automatizar funcionalidades nas redes e manter redes de telecomunicação próprias.

Conclusões preliminares

Parece consensual que o aumento no grau de automação das redes é desejável e merece a formulação de políticas e sinais regulatórios específicos para sua promoção e difusão. No entanto, a massificação da instalação de medidores inteligentes, especialmente em pequenos consumidores de baixa tensão, permanece uma questão controversa. 

No que tange à viabilidade econômica, os custos (inclusive de transação) tendem a ser maiores em países com muitas distribuidoras ou onde as distribuidoras não são donas dos medidores. Além disso, a escala é importante para reduzir custos na medida em que gastos com automação são melhores diluídos em uma base grande de clientes.

Finalmente, a disseminação das redes inteligentes, mesmo que restrita à automação das redes de distribuição, pode requerer alterações regulatórias, pois ela implica em gastos que são em parte atualmente classificados como custos operacionais, não fazendo jus à remuneração na tarifa de distribuição. Porém, a aceitação social das redes inteligentes tende a passar por arranjos regulatórios que não impliquem em aumentos nas tarifas, à exemplo das experiências francesa e italiana.

 

 

 


 

*Nivalde José de Castro é economista com mestrado em Economia da Indústria e da Tecnologia e doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É professor e pesquisador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel), do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

 

Lucca Zambonni    é engenheiro eletricista, com mestrado e doutorado em engenharia elétrica. Atualmente, é gerente do Programa de Pesquisa & Desenvolvimento da EDP Bandeirante Energia S.A.

 

 

Roberto Brandão é formado em filosofia e economia. É mestre em Filosofia e em Economia, com MBA em Finanças pelo Ibmec. É consultor na área de finanças de empresas do setor elétrico, como Eletrobras, Furnas, Chesf, Alusa, entre outras. É pesquisador sênior em Finanças do Gesel. 

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