Fluxo Reverso: O Desafio Técnico Que Virou Discurso Político

A energia é, por natureza, interdisciplinar. Envolve tanto ciências exatas, responsáveis por desenvolver e otimizar equipamentos e sistemas, quanto ciências sociais, essenciais para a regulação e formulação de políticas públicas. Dito isto, falemos sobre fluxo reverso.

A questão técnica do fluxo reverso não é novidade. Quem trabalha no setor elétrico deve se lembrar da famosa “curva do pato”, apresentada há mais de uma década pelo operador do sistema elétrico da Califórnia (CAISO, 2013). Essa curva mostrava o desafio de balancear a geração e o consumo de energia diante da crescente inserção de fontes renováveis distribuídas, especialmente a solar fotovoltaica.

Se o problema técnico é conhecido há tanto tempo, por que só agora o fluxo reverso está no centro do debate? E mais do que isso: por que, de repente, ele está sendo associado à ameaça de apagões? A verdade é que a geração distribuída renovável, incentivada desde os anos 2000 como solução para a segurança energética devido ao apagão ocorrido, não causa apagões. O que causa apagões é a falta de ação técnica e política para lidar com os desafios que ela impõe à rede.

O Operador Nacional do Sistema (ONS) já propôs medidas para mitigar os efeitos do fluxo reverso no relatório do Plano Anual da Operação Energética 2024-2028 (PAR/PEL 2024) (ONS, 2024). A questão é que, para essas medidas saírem do papel, é preciso vontade política e cooperação entre diferentes esferas. Se o legislativo aprovou, no passado, uma tarifa menor para remunerar o uso da rede—menor do que o executivo gostaria—agora precisa agir. Se governos estaduais incentivam a geração distribuída visando a criação de empregos e renda (e sim, a energia solar fotovoltaica gera cerca de 20 empregos por MW instalado) (CEPAL, 2020), também precisam dialogar com as concessionárias para garantir melhores práticas de operação.

Além disso, há mais de 20 anos contamos com editais específicos da ANEEL para Pesquisa e Desenvolvimento e Eficiência Energética, com o objetivo de impulsionar a digitalização da rede elétrica e aprimorar o sistema. No entanto, até hoje, avanços concretos nessa direção são limitados. Se queremos uma verdadeira transição energética no Brasil, a digitalização do setor elétrico precisa ser considerada uma prioridade, pois também contribuiria significativamente para solucionar os desafios da geração distribuída.

O fluxo reverso não deveria ser visto como um problema, mas sim como uma oportunidade. A geração excedente de energia, ao invés de ser motivo de preocupação, deve ser tratada como um motor de desenvolvimento sustentável. Para isso, é necessário abandonar o jogo de narrativas políticas e encarar o desafio com a seriedade técnica que ele exige.

Referências

CAISO – California Independent System Operator. What the Duck Curve Tells Us About Managing a Green Grid. 2013. Disponível em: https://www.caiso.com/Documents/FlexibleResourcesHelpRenewables_FastFacts.pdf.

ONS – Operador Nacional do Sistema Elétrico. Plano Anual da Operação Energética 2024-2028 (PAR/PEL 2024). 2024. Disponível em: https://www.ons.org.br/AcervoDigitalDocumentosEPublicacoes/NT-ONS%20DPL%200114-2024-%20PEN%202024%20-%20Condi%C3%A7%C3%B5es%20de%20Atendimento.pdf.

CEPAL. Indicadores de desempenho associados a tecnologias energéticas de baixo carbono no Brasil: evidências para um grande impulso energético. CEPAL, 2020. 56 p. Disponível em: https://www.cepal.org/pt-br/publicacoes/45943-indicadores-desempenho-associados-tecnologias-energeticas-baixo-carbono-brasil.

Sobre as autoras:

Aline Cristiane Pan é Doutora em Energia Solar Fotovoltaica pela Universidade Politécnica de Madri, Professora do Curso de Engenharia de Gestão de Energia da UFRGS, Coordenadora Geral da Rede Brasileira de Mulheres na Energia Solar e integrante do Comitê Permanente de Ações Estratégicas e Políticas para Equidade de Gênero da CAPES/MEC. Contato: aline.pan@ufrgs.br

Juliana Klas é professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É Doutora em Engenharia Elétrica e possui experiência profissional de mais de 10 anos nas áreas de Projetos de Automação Industrial e Gestão da Tecnologia.

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