“Nova York, você tem o poder de escolher o seu fornecedor de energia. Opte pela nossa empresa e obtenha excelentes tarifas para a sua eletricidade! São apenas cinco minutos para encontrar o plano perfeito para você.” O anúncio que preenche a página principal do site de uma fornecedora de energia e gás dos Estados Unidos reflete um cenário ainda difícil de se imaginar no contexto nacional. Nele, um consumidor comum que, como quem escolhe o melhor plano de Internet para a sua casa, tem também a opção de selecionar a empresa que lhe apresentar a alternativa mais viável de fornecimento de energia – possibilidade garantida por meio do Mercado Livre de Energia (MLE). Diante do contraste entre o que é visto em grandes potências mundiais e o que é oferecido ao usuário brasileiro, especialistas do setor elétrico vêm há algum tempo tentando responder a uma pergunta que não quer calar: o quão longe (ainda) estamos dessa realidade?
Primeiramente, é preciso destacar que esse modelo de consumo não é nenhuma novidade para quem utiliza energia em larga escala por aqui. Informações disponibilizadas em março pela Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel) revelam que o MLE – implementado no país há mais de 20 anos – responde por 36% de toda a energia consumida em solo nacional. Os responsáveis por tais números são usuários que possuem demandas superiores a 500 kW (geralmente com contas de luz acima de R$150 mil, como é o caso das grandes indústrias). Isto equivale a pouco mais de 30 mil consumidores, cerca de 0,03% de um total de 89 milhões. As demais categorias são enquadradas no mercado cativo (regulado), ambiente onde o cliente paga à distribuidora uma tarifa de energia regulada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), sem a possibilidade de negociação.
Mas, ao que tudo indica, esse paradigma passará pela maior mudança já vista em décadas, graças à Portaria Normativa Nº 50/GM/MME. O texto publicado em setembro do ano passado pelo Ministério de Minas e Energia (MME) estabelece que todos os consumidores de alta tensão – um contingente adicional calculado em 106 mil usuários – possam comprar energia elétrica de qualquer concessionário, permissionário ou autorizado pelo Sistema Interligado Nacional (SIN).
A medida, que entrará em vigor a partir de janeiro de 2024, está sendo considerada um grande passo rumo à abertura total do mercado de energia, embora ainda haja diversos obstáculos nesse trajeto – a começar pelo Projeto de Lei que possibilita tal expansão no país (PL 414/2021), travado na Câmara dos Deputados há mais de dois anos. Também em setembro de 2022, foi aberta uma Consulta Pública para uma minuta, contida na Portaria Nº 690/GM/MME. O texto propõe que consumidores comerciais e industriais em baixa tensão passem a ter o direito de escolher o seu fornecedor de energia a partir de 2026. Já o consumidor residencial e rural poderia fazê-lo a partir de 2028.
Possíveis cenários de transição
Para o presidente-executivo da Abraceel, Rodrigo Ferreira, a abertura do mercado de energia elétrica no Brasil a partir de 2026 é algo que ainda permanece no horizonte, uma vez que a implementação da medida é “plenamente possível, do ponto de vista técnico e legal”. Segundo o gestor, a Abraceel e a consultora EY Brasil estudaram alguns possíveis cenários decorrentes de uma abertura completa (tendo como margem a data proposta pela minuta), considerando as premissas de crescimento do consumo e a velocidade de migração de usuários do mercado cativo para o livre.
No levantamento, as empresas realizaram simulações para avaliar os potenciais impactos da transição entre mercados no contexto brasileiro, tomando como referência experiências internacionais. O estudo abrange um intervalo de 14 anos, a partir de janeiro de 2026. Segundo a pesquisa, ao fim deste período, a migração atingiria um total de 50% dos consumidores brasileiros de energia em baixa tensão em um dos cenários, e 70% em outro. Para a alta tensão, ambos os panoramas consideraram uma migração de 80% do mercado, distribuída linearmente ao longo dos três primeiros anos de abertura.
“Nesse estudo, um dos esforços foi estimar como os consumidores responderiam à possibilidade de migrar para o Mercado Livre de energia tão logo recebessem esse direito, avaliando a literatura internacional para conhecer o padrão de comportamento dos consumidores em países que já universalizaram o acesso ao Mercado Livre de energia”, explica o executivo.
A tendência observada em Portugal após a abertura do mercado foi um dos cenários levados em consideração pelas companhias. Ferreira destaca que o padrão identificado no país aproximou-se de uma curva em ‘S’, onde os consumidores, em um primeiro momento, migraram de maneira conservadora. “Isto ocorreu porque a possibilidade de escolher o fornecedor de energia era uma novidade. No entanto, conforme as informações foram difundidas e assimiladas, os consumidores passaram a ter mais conhecimento do Mercado Livre de energia e a migração para esse ambiente foi acelerada, até se estabilizar.”
Na Grã-Bretanha, outro local cujas experiências foram analisadas para o desenvolvimento do estudo, o mesmo padrão de migração foi verificado. “Os dados apontam que, embora o processo de abertura tenha se iniciado nos anos 1990, apenas recentemente o Mercado Livre de Energia local ultrapassou o patamar de 60%, comportamento similar ao observado no Texas, nos Estados Unidos”, enfatizou o diretor.
Sabe-se que, em ambos os casos, a falta de uma comunicação adequada com o consumidor comum dificultou o processo de transição. Para o diretor-presidente da Associação Nacional dos Consumidores de Energia (Anace), Carlos Faria, esse é um erro que não pode ser cometido no Brasil. “O interesse pelo Mercado Livre só se tornará realidade se houver uma maior difusão de informações sobre o tema”.
Na visão do especialista, essa empreitada não pode se limitar à difusão de propagandas de comercializadoras interessadas em vender seus serviços. “É necessária uma comunicação clara e detalhada, capitaneada pelo governo e pelo regulador, sobre os benefícios e riscos do novo ambiente de contratação de energia, de modo que o consumidor tenha consciência de ambos e possa tomar uma decisão esclarecida”, ressaltou.
Faria analisa que o novo formato deva, de fato, despertar o interesse de consumidores de média e baixa tensão, tendo em vista o sucesso da Geração Distribuída (GD) no país, principalmente por meio da instalação de painéis solares. Para o executivo, “isso mostra que os brasileiros estão interessados em buscar alternativas que reduzam seus gastos com energia”.
Impactos do MLE na dinâmica do setor
É evidente que uma mudança tão significativa na dinâmica de negociação de energia levanta uma série de questionamentos acerca dos impactos que poderão ser observados nos próximos anos. Afinal, há de se considerar também como o novo cenário afetará as empresas que participam desse processo. No que tange às companhias de geração, será necessário enfrentar o desafio de sair de uma espécie de ‘zona de conforto’, como destaca o presidente da Thymos Energia, João Carlos Mello.
“Os geradores se acostumaram com contratos de longo prazo e de financiabilidade mais fácil. Já o mercado de curto prazo (que é o caso do Mercado Livre) normalmente não compra contratos extensos. Contudo, suas negociações são recorrentes, e tal dinâmica já foi entendida pelos bancos como uma garantia de venda dessa energia. Por isso, as instituições financeiras não estão enxergando essa abertura de mercado como algo tão dificultoso para os geradores, à medida que eles vão tendo as receitas garantidas – no sentido de que existe mercado para tal.”
Apesar disso, será necessário às empresas ‘correrem atrás’ desse nicho, destaca Mello. “O mercado de varejo possui uma capilaridade enorme – em um momento, você está lidando com cem clientes e, no outro, passa a lidar com um milhão. É uma dificuldade intrínseca à abertura do mercado. Mas o mercado ainda está ali! Imagino que, uma vez fornecido um intervalo de tempo apropriado, é possível se adequar à essa nova realidade. Não são problemas intransponíveis, é uma mudança de hábito.”
Para Christian Cunha, sócio-fundador da Energizou – comercializadora de energia focada no varejo e “atacarejo” –, os potenciais problemas decorrentes de uma abertura total do mercado já estão relativamente claros, o que tem levado a debates sobre possíveis soluções. O executivo avalia que, nesse contexto, empresas geradoras e distribuidoras enfrentarão realidades distintas.
“Do ponto de vista de geração e comercialização, acredito que haja grande interesse nessa abertura, uma vez que o mercado vai se tornar mais dinâmico e competitivo, com mais oportunidades e negócios. O grande desafio, realmente, é a questão das distribuidoras, pois elas têm hoje um problema chamado contratos legados. Historicamente, eles apresentam preços altos, que são destinados ao mercado cativo, e isso naturalmente terá de ser endereçado”, afirma Cunha.
Apesar do entrave, o empresário está confiante de que já exista um plano delineado para resolver a questão. “Acredito que o PL 414, cuja votação é aguardada com grande expectativa, já trata desse assunto. Por isso, não acho que seja uma solução muito difícil. A proposta que existe hoje é pegar toda a geração dos contratos legados – especialmente uma sobrecontratação – e alocar isso através de um encargo em todos os agentes do setor, seja no mercado cativo ou no livre.”
Mercado Livre e o risco de sobrecontratação
A Abraceel, junto à EY Brasil, também abordou em seu estudo as preocupações sobre possíveis desequilíbrios nas distribuidoras de energia devido à sobrecontratação (sobra de contratos legados). Como conclusão, a companhia avaliou que o risco desta situação ocorrer em consequência da migração de consumidores do Mercado Regulado para o livre não será um problema. No entanto, é destacado que essa garantia depende de uma decisão do poder público de conceder o direito de escolha a todos os consumidores em janeiro de 2026.
Com relação à carteira de contratos das distribuidoras, a entidade identificou que o estoque de acordos no Mercado Regulado será naturalmente reduzido até 2028, principalmente devido à retirada da energia proveniente de usinas da Eletrobras do regime de cotas compulsoriamente alocadas às distribuidoras e ao término de contratos de termelétricas a óleo com alto custo operacional. Em seguida, prevê-se um período de estabilização na redução desses contratos de energia até 2032 – quando outros se encerram e o estoque volta a diminuir.
“Com essas e outras premissas, não há risco de registrar sobras de energia com as distribuidoras em nenhum ano. Mesmo em um cenário mais agressivo, que combina uma premissa conservadora de crescimento da carga com uma premissa agressiva de migração, de 70%, uma pequena quantidade de sobras de energia seria possível, mas facilmente equalizada por meio dos mecanismos introduzidos pela Lei 13.400/2021”, afirma o diretor-executivo da associação.
Segundo Ferreira, tal norma estabeleceu que todo o volume de energia de geração distribuída deve ser considerado como exposição involuntária por parte das distribuidoras. Isso significa que a Aneel deve reconhecer esse volume nos processos de revisão tarifária, a fim de garantir o equilíbrio econômico-financeiro das concessionárias. Com essa medida, espera-se que as distribuidoras não enfrentem situações de sobrecontratação com a migração de consumidores para o Mercado Livre a partir de janeiro de 2026.
Compra e venda
Outra questão que suscita dúvidas em relação à abertura do mercado é como será realizada a eventual comercialização de energia para o consumidor que não utiliza a alta tensão, uma vez que a realidade das negociações no Ambiente de Contratação Livre (ACL) é relativamente complexa – é necessário estimar a demanda, analisar diferentes tipos de contratos e contar com a mediação das comercializadoras.
“A perspectiva é que os consumidores de média e baixa tensão sejam representados, na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), por um representante varejista. Essas empresas, que poderão ou não serem comercializadoras, serão responsáveis pela representação e poderão também oferecer serviços relativos à estimativa de demanda, análise de contratos, etc”, explica o diretor-presidente da Anace.
Carlos Faria também ressalta a importância de garantir que esses serviços sejam disponibilizados no mercado de forma competitiva, observando que a representação e gestão não necessariamente precisam ser realizadas pela mesma empresa que fornece a energia.
Mas e a conta de luz? Ao que tudo indica, não haverá grandes mudanças em sua composição. “O consumidor livre paga exatamente tudo o que o cativo paga, a diferença é que ele contrata energia elétrica livremente, da empresa que escolher. No ambiente competitivo que é o Mercado Livre, o componente ‘energia elétrica’ na conta de luz será mais barato”, destaca o porta-voz da Abraceel.
A discussão acerca do tema é vista por algumas entidades como uma oportunidade de revisar questões consideradas problemáticas na cobrança mensal de energia. Para Clauber Leite, consultor do Programa de Energia do Instituto Pólis – organização sem fins lucrativos especializada em políticas sociais –, independentemente da abertura do mercado, “é preciso fazer uma profunda avaliação de quais subsídios – que estão entre os principais responsáveis pelo custo excessivo da energia – devem permanecer e quais devem ser extintos, por não serem mais necessários”.
“Os custos dos subsídios que tiverem de ser mantidos devem ser transferidos ao Tesouro Nacional, deixando de pressionar as contas de luz. Considerando especificamente os consumidores de baixa renda, é preciso rever as condições de tarifação de energia, uma vez que o benefício da tarifa social tem sido insuficiente para garantir o acesso dessas famílias à energia”, conclui o especialista.
Reportagem desenvolvida por Fernanda Pacheco.