Sabemos que o Brasil é um país com características únicas no tocante à geração de energia elétrica. A razão para isso não advém exclusivamente do grande percentual de participação de hidrelétricas na matriz, pois países como Canadá, Noruega, Colômbia, Áustria, Nova Zelândia, entre outros, possuem percentuais similares. A peculiaridade brasileira está em manter a energia proveniente de hidrelétricas na base do sistema e usar as demais fontes para o atendimento de picos de demanda. Até meados da década de 2000, o complemento da demanda era feito quase que exclusivamente por meio de usinas térmicas, o que consolidava o sistema elétrico brasileiro como um sistema hidrotérmico.
Um dos conceitos mais elementares no planejamento de sistemas hidrotérmicos desse tipo é conhecido por dilema do operador. Nele, o operador do sistema deve tomar a decisão de despachar mais ou menos energia hidrelétrica no atendimento à demanda futura, o que repercute em menor ou maior custo de operação, respectivamente. Naturalmente, a preferência é usar a água dos reservatórios, pois esta tem um custo marginal nulo e, portanto, gera uma política operativa mais barata. Só que há um problema: se os reservatórios forem deplecionados em demasia e ocorrerem chuvas abaixo do esperado nos meses subsequentes, mais térmicas deverão ser acionadas futuramente para que o atendimento à demanda seja garantido.
A consequência é que o custo da operação aumenta, trazendo consequências diversas que atingem desde o gerador até o consumidor final. Por outro lado, se os reservatórios forem mantidos predominantemente cheios, há um risco maior de ocorrer vertimentos caso chuvas acima do esperado aconteçam no futuro, o que significa desperdício de energia potencial. Assim sendo, as decisões mais acertadas seriam gerar com hidrelétricas, desde que as chuvas futuras consigam reestabelecer o nível dos reservatórios, ou aumentar a participação de termelétricas no curto prazo, a fim de manter níveis seguros de água nos reservatórios para atendimento futuro mesmo em eventuais situações de estiagem. Em essência, podemos dizer que o dilema do operador resulta do nível atual dos reservatórios e, majoritariamente, incerteza das vazões afluentes futuras.
Contudo, o sistema elétrico brasileiro evoluiu nos últimos vinte anos com a mudança da matriz de geração. O primeiro ponto está na perda da capacidade relativa de regularização dos reservatórios do Sistema Interligado Nacional (SIN). Em análise histórica, o último reservatório com bom nível de regularização construído foi Irapé, que entrou em operação em 2006. Antes dele, Serra da Mesa, inaugurado em 1998. Portanto, entre 1998 e 2024, apenas dois reservatórios de acumulação foram agregados ao SIN. A título de comparação, no mesmo intervalo de 28 anos entraram em operação 48 usinas com reservatórios a fio d’água (ver gráfico). Os números comprovam uma decisão estrutural do setor elétrico em basear a expansão hidrelétrica em usinas sem capacidade de regularização.
O segundo ponto está no grande aumento da participação de outras fontes na matriz elétrica brasileira, em particular a eólica. Se por um lado isso é benéfico ao sistema por essa fonte ajudar a manter a matriz predominantemente renovável, por outro ele traz
desafios técnicos relativos à variabilidade da geração de energia. É uma fonte que está à mercê de fenômenos naturais, ou seja, ela gera energia quando há condições favoráveis de vento. Além disso, a energia produzida por aerogeradores deve ser transmitida imediatamente aos centros de carga, pois baterias de porte compatível com essa escala de geração ainda estão sendo desenvolvidas. Usinas hidrelétricas com reservatórios de regularização são alternativas interessantes para funcionar como “baterias” que suportam a operação de eólicas. Entretanto, como vimos, a capacidade de regularização do sistema vem caindo sistematicamente.
O gráfico mostra a evolução temporal da entrada em operação das usinas hidrelétricas no SIN, comparando as potências instaladas com os volumes úteis. Nos últimos 20 anos é clara a distinção entre o acréscimo de potência instalada (representando o número de usinas que entraram em operação) e o incremento no volume útil total acumulado no sistema.
Dados esses argumentos, podemos antever que a dependência da energia térmica aumente. De fato, os últimos Planos Decenais de Expansão publicados pela Empresa de Pesquisa Energética trazem opções no sentido de viabilizar esse aumento, em particular de térmicas a gás natural. A questão é que mesmo sendo menos poluentes do que empreendimentos a diesel e carvão, por exemplo, ainda são fontes não renováveis de geração. De qualquer maneira, são alternativas despacháveis que, se operadas adequadamente, podem oferecer suporte a fontes variáveis de geração.
Em suma, a menor capacidade de regularização, a participação crescente de eólicas (e logo solares fotovoltaicas) e o aumento do uso de térmicas no SIN nos convida a revisitar o dilema do operador. Este novo dilema agrega, agora, a incerteza dos ventos. Claro que o sistema, recém rebatizado de hidro-termo-eólico, ainda precisa ser planejado de modo a atender a demanda com o menor custo possível. Contudo, o processo decisório se alterou: para manter o custo baixo, é preciso despachar hidrelétricas e eólicas. No caso das hidrelétricas, seu uso está condicionado ao atendimento à demanda e ao suporte às eólicas. Esse novo duplo objetivo requer que os reservatórios sejam utilizados com parcimônia, pois, caso sejam deplecionados em demasia, eles podem não conseguir atender nem a um, nem a outro.
Por fim, não se pode deixar de comentar que essas mudanças todas vêm ocorrendo em um sistema que foi concebido há muitos anos. É pouco provável que os reservatórios com capacidade de regularização do SIN tenham sido projetados considerando que, um dia, eles iriam precisar dar suporte a outras fontes. Da mesma forma, não se imaginava que esses mesmos empreendimentos poderiam ser primordiais na mitigação de efeitos de mudanças climáticas, atuando em favor da segurança contra os extremos hidrológicos cada vez mais frequentes. Assim sendo, iniciativas por parte do Ministério de Minas e Energia, como o Plano de Recuperação de Reservatórios, são fundamentais para aumentar a resiliência do SIN frente a todas essas mudanças. Do contrário, muito em breve, o operador não mais terá dilemas com que se preocupar.
Sobre o autor:
Daniel Detzel graduou-se em Engenharia Civil na Universidade Federal do Paraná (UFPR, em 2005) e é mestre e doutor em Engenharia de Recursos Hídricos e Ambiental pela mesma instituição (2009 e 2015, respectivamente), tendo se especializado em Hidrologia Estocástica. Trabalha como Professor Adjunto no Departamento de Hidráulica e Saneamento (DHS) e como Professor Permanente no Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Recursos Hídricos e Ambiental (PPGERHA), na UFPR. Atua nas áreas de Engenharia de Recursos Hídricos e Estudos Energéticos, com foco em Hidrologia Estatística e Estocástica