Pesquisa, desenvolvimento e inovação: desafios do setor elétrico

Por: Matheus de Paula

Iniciativa estabelecida no início dos anos 2000, determina a realização de investimentos em pesquisa e desenvolvimento por parte das empresas concessionárias do setor elétrico

Em constante evolução, o setor elétrico enfrenta diversos desafios quando o assunto é modernização e desenvolvimento. Dentre esses obstáculos, destacam-se a necessidade contínua de descarbonização da matriz energética, com o crescimento da geração de energia oriunda de fontes limpas, bem como a adaptação e mitigação dos impactos das mudanças climáticas na geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. Neste contexto, duas palavras são fundamentais para impulsionar a inovação para as companhias elétricas: pesquisa e desenvolvimento (P&D). 

Esse conceito engloba uma série de compromissos estabelecidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), no qual empresas concessionárias do setor elétrico devem destinar uma parcela da renda líquida operacional para investimentos em temas específicos, com base nas necessidades do setor e nas prioridades estratégicas da ANEEL, voltadas para pesquisa e inovação – com exceção daquelas que geram, exclusivamente, a partir de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), biomassa, cogeração qualificada, usinas eólicas ou solares. 

O Programa de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da ANEEL foi criado juntamente com a promulgação da Lei nº 9.991, de 24 de julho de 2000, também conhecida como Lei de Modernização do Setor Elétrico. Desde a sua formação, a iniciativa vem sendo gradualmente implementada e aprimorada por meio de diversas resoluções normativas e deliberações realizadas pela própria ANEEL.

Segundo o levantamento da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), no período entre 2010 e 2020, foram investidos mais de 8 bilhões de reais pelas concessionárias de energia em projetos de P&D. 

Todos esses investimentos, além de tornar o segmento mais competitivo, também resultam em ganhos e melhorias na prestação de serviços aos consumidores de todo o país, conforme explica Lindemberg Reis, Gerente de Planejamento e Inteligência de Mercado da ABRADEE e Coordenador de P&D Estratégico de Sandboxes Tarifários. 

“No setor elétrico, sobretudo nas distribuidoras, os impactos do P&D são diversos, porque a sociedade se beneficia, a distribuidora e o usuário de energia elétrica também. Isso acontece porque há um desenvolvimento de novos negócios, empresas e economia, pois você não faz pesquisa e desenvolvimento apenas com o corpo técnico da distribuidora, pelo contrário, é necessário ter parceiros para essa iniciativa e daí surgem a participação dos centros tecnológicos, das universidades e startups. Então, todo mundo se beneficia no processo”, explica o Coordenador de P&D Estratégico de Sandboxes Tarifários. 

Papel da ANEEL na inovação e desenvolvimento do setor elétrico

Para garantir um avanço constante no setor elétrico, a ANEEL estabelece diretrizes para o Programa de Pesquisa e Desenvolvimento, contemplando os três principais segmentos: geração, transmissão e distribuição de energia elétrica  (GTD). Segundo as normativas da Agência, a porcentagem de investimento altera de acordo com o tipo de empresa e região onde ela atua, em geral, as empresas são obrigadas a investir cerca de 0,5% da sua renda líquida operacional.

Essa estrutura regulatória é fundamental para promover o desenvolvimento de novas tecnologias e soluções no setor elétrico brasileiro. Desde a criação do P&D em 2000, aconteceu uma série de marcos regulatórios que dão continuidade no propósito de desenvolver inovações para o setor. 

Em 2004, com a Resolução Normativa n° 288/2004, a ANEEL estabeleceu as primeiras diretrizes para o investimento em P&D. Essa resolução definiu os percentuais mínimos a serem aplicados e os tipos de projetos elegíveis. A seguir, a Resolução Normativa nº 414, de 2010, consolidou e aprimorou as diretrizes do P&D, modernizando seus objetivos, instrumentos e mecanismos de acompanhamento. Como também, a criação do Comitê Gestor do P&D, que, representado por membros da ANEEL, do setor elétrico e da academia, tem a função de assessorar a Agência na gestão do programa e acompanhar os resultados das pesquisas.

A aprovação da Resolução Normativa Normativa n° 482, de 2013, estabeleceu novas diretrizes para o P&D da ANEEL, com foco em eficiência energética, energias renováveis e novas tecnologias de geração e transmissão de energia. Já no ano de 2019, aconteceu a revisão das diretrizes do Programa de P&D da ANEEL, com tópicos voltados à transição energética, a digitalização do setor elétrico e a descarbonização da matriz energética.

Na última atualização, em 2023, houve a implementação de mudanças estruturais no programa, com foco em maior flexibilidade e agilidade na execução de projetos, além de permitir a participação de startups e fundos de investimentos.

Para o Doutor em engenharia e Pesquisador do Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (CEPEL), Hélio Amorim, o surgimento da obrigação do investimento em pesquisa obrigou as concessionárias de energia a uma adequação burocrática complexa, que resultou num desafio imediato para essas empresas. 

“Durante esse período, os processos que envolvem submissão, avaliação, aprovação e, finalmente, execução, foram modificados, com o intuito de aperfeiçoamento do processo. Logo, um dos principais desafios encontrados foi a adequação dos envolvidos a todo esse processo, que era, como de se esperar, novidade. O processo inicial era muito custoso e burocrático, dificultando demasiadamente o fluxo contínuo dos projetos. Aos poucos, as empresas e as instituições foram se aperfeiçoando e encontrando meios para acelerar e, por vezes, automatizar o processo, por isso, as empresas do setor criaram departamentos exclusivos para se adequarem ao programa”, explica. 

Além de estimular a pesquisa e inovação das concessionárias do setor elétrico, a ANEEL também assume a responsabilidade de fiscalizar os projetos em andamento e avaliar a maturidade tecnológica para sua implementação. Dessa forma, a agência utiliza o padrão TRL (Technology Readiness Level), que determina os diferentes estágios de maturidade de uma tecnologia até sua aplicação prática, caracterizados em níveis de 1 a 9. 

Os estágios iniciais, do 1 ao 3, representam a fase de pesquisa básica e viabilidade do projeto – com o objetivo de entender se a pesquisa é justificável. Nos níveis de maturidade 4 a 6, ocorre o plano de desenvolvimento e teste em ambiente controlado. Por fim, em seguida, do 7 ao 9, acontece a implementação de toda pesquisa e desenvolvimento. 

Desenvolvimento, pesquisa e inovação

De acordo com  o Especialista em Inovação Tecnológica da Neoenergia, João Fonseca, desde o estabelecimento do Programa de Pesquisa e Desenvolvimento da ANEEL, as empresas do setor elétrico têm demonstrado uma compreensão profunda da importância dos investimentos em P&D. “A Neoenergia, por exemplo, enxerga o Programa como uma grande oportunidade que as distribuidoras vêm tendo, ao longo do tempo, para, de fato, alcançar resultados concretos, com produtos no mercado, que conseguem promover uma movimentação dos agentes e dos nossos parceiros para a inovação em rede”.

Do ponto de vista das distribuidoras, João frisa as diferenças que cada concessionária de distribuição apresenta no cenário de P&D, processo que é influenciado pelo tamanho e área de atuação. Com base nisso, a Neoenergia implementou uma colaboração entre as distribuidoras nos projetos do seu portfólio, com o objetivo de obter uma tecnologia comum.

“Olhando para o setor elétrico, existem muitas diferenças entre as distribuidoras. Têm aquelas de área de concessão grande e as distribuidoras que fazem parte de uma área de concessão menor. Pela Neoenergia, a gente tem a concessão de cinco distribuidoras e a maior parte dos nossos projetos são cooperativos, porque a gente entende que os problemas da distribuição, pelo menos nas nossas áreas de concessão, na maior parte das vezes, são comuns. Então, quando a gente desenvolve uma tecnologia que vai atender a necessidade da distribuição, todas as distribuidoras participam, por mais que a pesquisa se desenvolva em uma área de concessão específica, todas se beneficiam desses avanços e soluções”, destaca.

A implementação globalizada de políticas de P&D nas concessionárias, segundo Paulo Barreto, professor de Engenharia Elétrica do  Instituto Brasileiro de Educação Continuada – INBEC, foi uma das determinações da ANEEL, em 2023. “A orientação mais recente da ANEEL, que começou a ser aplicada em 2023, está no sentido de que um projeto não represente um processo isolado, mas que faça parte de um movimento, ou seja, de um conjunto de pesquisas que estão na mesma linha de raciocínio. Então, a orientação é para projetos encorpados, dessa forma, ampliamos a perspectiva da criação de produtos para o mercado, como um todo”, explicou. 

Inovação na prática

Como resultado do Programa de P&D da ENEEL, a Neoenergia desenvolveu o GODEL, uma família de tecnologias nacionais para redes inteligentes, baseada nos pilares de perdas e qualidade. O GODEL conta com  conjunto de equipamentos, softwares, analytics e sistemas focados nos processos de redução de perdas e de melhoria da qualidade do produto e do serviço, tanto relacionado ao nível de tensão e correntes harmônicas, como relacionado à duração e frequência das interrupções. 

“O GODEL funciona, por exemplo, para saber quais são os motivos para um desligamento de energia do cliente, e também, o lugar onde isso ocorre na rede. Dessa maneira, a gente consegue reduzir o que chamamos de área de ‘vulnerabilidade do cliente’, ao pegarmos uma rede de 6 mil quilômetros e reduzirmos a 10%, além disso ainda podemos diminuir, por meio de ações de inspeção da rede. Desse modo, conseguimos saber quais são as áreas afetadas, com isso somos capazes de realizarmos ações muito mais assertivas no sentido de melhoria de serviço”, detalha o especialista em Inovação Tecnológica da Neoenergia João Fonseca.

O especialista ressalta ainda que existem quatro pilares fundamentais da Neoenergia para a implementação de novas tecnologias desenvolvidas, de acordo com o Programa de Desenvolvimento e Inovação da ANEEL e, são elas: inovação em rede; desenvolvimento tecnológico; propriedade intelectual; e inserção dos equipamentos no mercado. ”Então, o GODEL exemplifica esses pilares, porque ele é um case de inovação em rede, pois são vários parceiros que estão envolvidos. É um case de desenvolvimento tecnológico, porque essas tecnologias foram avançando na escala de TRL e a gente foi, de fato, desenvolvendo esses produtos, essas tecnologias. E, por fim, é um case de propriedade intelectual, visto que todas essas tecnologias geraram registros de EPI, sejam eles patentes, software, dentre outros”.

GODEL Smart Sensor 34,5 kV é um equipamento de monitoramento de redes de média tensão até 34,5 kV

Outro projeto resultante do Programa de P&D é o IMA-DP, tecnologia desenvolvida pela CEPEL, que se baseia na Medição de Descargas Parciais (DP), um teste não destrutivo que visa avaliar o isolamento de equipamentos elétricos de alta tensão. Essa tecnologia pode ser aplicada em cabos, geradores, motores, compensadores síncronos, transformadores de potência, reatores, transformadores de instrumentos, disjuntores, subestações isoladas a gás, capacitores de potência e para-raios.
Para Hélio Amorim, um dos engenheiros participantes do projeto, o IMA-DP representa a independência tecnológica que as empresas brasileiras têm para produzir suas próprias tecnologias e soluções. “O IMA-DP é um sistema desenvolvido por engenheiros e cientistas brasileiros, que já obteve prêmios nacionais e internacionais. Atualmente, a sua utilização está em plena expansão, atingindo as maiores e mais importantes empresas do setor elétrico, incluindo a Eletrobras, Petrobras, Itaipu, entre outras”, conclui.

Amostra de descargas parciais do IMA-DP

Plano Quinquenal de investimentos do setor elétrico 

Criado também pela ANEEL, o Plano Quinquenal de Investimentos, conhecido como Plano Estratégico Quinquenal de Inovação (PEQuI), define as diretrizes, objetivos e metas de investimentos das empresas para um período de cinco anos. A edição mais recente do plano entrou em vigor em 1 de outubro de 2023 e teve o objetivo de definir as prioridades na produção de inovação no setor elétrico até 2028. O Plano está focado em ações voltadas à digitalização do setor, cibersegurança, modernização e modicidade das tarifas, smart grids, entre outros.

“As pesquisas trouxeram uma diversidade muito grande no setor, mas também o desafio do regulador em monitorar se esses produtos estão de acordo com a proposta da ANEEL, isso fez com que a Agência realiza-se uma série de aperfeiçoamentos regulatórios e normativos que foram pautados ao longo do ano de 2023, e resultou numa mudança de regulamentação do Plano Quinquenal de Investimentos. Então, você tem diretrizes muito claras de onde as distribuidoras ou em temas que as distribuidoras deveriam investir seus recursos. Quando falo de distribuidoras, na verdade, do setor elétrico como um todo, ou seja, distribuidoras, transmissoras e geradoras, que têm a compulsoriedade de aplicar o recurso para pesquisa e desenvolvimento. Então, nos próximos 5 anos, elas têm diretrizes muito claras de quais temas são estratégicos a serem investido”, explica Lindemberg.

Além disso, em 2023, entrou em vigor uma determinação com o objetivo de enfrentar o desafio da transparência e prestação de contas das empresas do setor elétrico, em relação aos recursos recebidos da população, sob o pretexto da sociedade  reconhecer os serviços prestados em seu benefício. “Esse é um ponto que resultou, inclusive, numa preocupação e determinação normativa externada pela ANEEL, da qual os projetos de pesquisa e desenvolvimento, nos próximos 5 anos, terão vídeos de divulgação dos seus portfólios de investimentos, com o objetivo de demonstrar à sociedade, de forma prática e pragmática, os resultados dos recursos”, complementa Lindemberg.  

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