*Por Danieli Giovanin
Em um mundo de trocas rápidas e de acontecimentos cada vez mais efêmeros, é um desafio falar da memória de empresas, ainda mais de um setor, como é o caso da Fundação Energia e Saneamento. A memória do setor energético é fundamental para a compreensão da história do desenvolvimento do Estado de São Paulo, sendo um case de valor mundial quando analisamos o processo de urbanização e crescimento da cidade.
Para entender o que é memória de uma empresa, é necessário perceber que cada companhia possui suas lembranças, como uma pessoa. A memória, entendida no sentido original do termo, é tudo aquilo que uma pessoa retém em sua mente, resultado de suas vivências. Ela é seletiva, pois, consciente ou inconscientemente, escolhe o que lembra, não guardando tudo que acontece ao indivíduo, configurando-se como um acervo de situações marcantes. A história, então, seria a narrativa que articulamos a partir dos registros presentes em nossa memória, sobre alguém ou algum acontecimento.
No caso das empresas, a memória também está ligada a sua reputação, já que a experiência contribui para a construção ou deterioramento do imaginário, e a memória, registrada em documentos ou na cabeça das pessoas, é o que consolida a reputação institucional. Então, quando falamos da memória acumulada pelas empresas e da narrativa histórica daí resultante, podemos falar da história da empresa, do seu discurso de apresentação e da relação de quem recebe esse discurso. Temos, então, a noção de que a história da empresa não pertence a ela somente, mas também a todos seus públicos de interesse.
Temos a percepção que, ao futuro, todas as empresas podem ir, mas o que legitima a capacidade de sobrevivência em terrenos conflituosos e incertos e o que evidencia um poderoso diferencial narrativo e postural de uma empresa é a sua história, o seu legado ao longo do tempo e a possibilidade de comparação com eventos já vividos. Entretanto, não se trata de definir o futuro apenas a partir do passado, em uma equivocada visão pragmática da história, mas evitar apostar tudo somente em uma determinada perspectiva, rompendo com todas as raízes e identidades construídas ao longo do tempo. Conhecer o passado é conhecer os passos dados por pessoas antes de nós; é entender que, para desenvolver algo original, é necessário, realmente, conhecer tudo o que foi feito antes.
Na prática, a memória empresarial tem seu início em meados do século XX, em empresas europeias que criaram os primeiros relatórios com conteúdo referente à formação de seus negócios, um modo de registrar a sua trajetória e explicar o porquê de determinadas decisões. Já nos anos de 1920, as escolas de negócios implantaram cursos sobre história empresarial, visando destacar o aspecto empreendedor de muitos fundadores (personalização da história).
Na década de 1960, alguns pesquisadores começam a ligar a memória empresarial às mudanças organizacionais, usando da trajetória das empresas como um significativo dado para compreender o contexto sócio financeiro e as tomadas de decisões no mundo empresarial como um todo. Na década seguinte, a História passa a ser interpretada de novas formas e o simbólico ganha força como compreensão para a formação de grupos e comunidades, lugar em que se insere a memória empresarial.
Entre os anos de 1980 e 1990 surgem nos Estados Unidos e no Brasil as primeiras agências formadas por pesquisadores, profissionais das áreas de Ciências Humanas, em especial História e Arquivística, dedicados a cuidar dos documentos acumulados por empresas, interpretando-os como acervos históricos, tratando-os e disponibilizando-os como fontes de pesquisa para a sociedade, além de utilizá-los em produtos como livros institucionais comemorativos.
As empresas, então, passam a ter “lugares de memória”, espaços com políticas bem definidas de preservação de seus acervos históricos, como foi o caso de empresas como a Klabin, o Grupo Ultra, a Unilever, a Natura, a Nestlé, a Bunge, a Eletropaulo, a Cesp e a Comgás, com destaque especial as três últimas, que deram origem aos acervos arquivísticos e museológicos da Fundação Energia e Saneamento.
A Fundação Energia e Saneamento, organização privada sem fins lucrativos, foi criada em 1998 pelo governo estadual paulista, com o objetivo de preservar a memória e o patrimônio histórico do setor energético no Estado de São Paulo, frente às grandes privatizações de empresas desse setor na época, uma ação inovadora e original. Os acervos iniciais da Fundação foram, então, os acumulados pela Eletropaulo, Cesp e Comgás, que foram entendidos em toda a sua importância histórica.
Essa memória preservada é refletida em extenso acervo documental, composto por mais de 1.600 metros lineares de documentos técnicos e gerenciais, 260 mil documentos fotográficos, cerca de 3.500 objetos museológicos, 50 mil títulos na biblioteca, além de documentos cartográficos, audiovisuais e sonoros, reunidos a partir de meados do século XIX, além de patrimônio arquitetônico e ambiental, composto por quatro pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), as Usinas-Parque de Salesópolis, Rio Claro, Brotas e Santa Rita do Passa Quatro e dois imóveis urbanos em Itu e Jundiaí.
A importância do trabalho de preservação da memória do setor energético da Fundação é essencial, tendo em vista os diferentes momentos pelos quais passaram as empresas de energia ao longo do processo de desenvolvimento das cidades, modos de vida e o próprio uso da energia no cotidiano das cidades. O acervo arquivístico da Fundação, sob a guarda do Núcleo de Documentação e Pesquisa, é focado na memória do setor energético, que abrange a memória das empresas, públicas e privadas, que deram origem ao que conhecemos como empresas de energia, possuindo desde documentos sobre geração, transmissão e distribuição de energia, projetos de construção de usinas, processo de eletrificação de meios de transporte público e instalação de iluminação pública a gás, entre outros temas.
Os documentos acumulados pelas empresas do setor energético, além de contarem suas memórias, dão importantes subsídios para pesquisas acadêmicas e até mesmo para as novas ações das empresas que atuam nesse setor atualmente, explicando como o setor foi iniciado nas terras paulistas, que técnicas empregadas tiveram retorno positivo ou negativo e o contexto da tomada de decisões. Esse acervo é hoje um dos mais importantes dentro das linhas de pesquisa de história da energia e da urbanização da cidade de São Paulo.
Atualmente, as discussões sobre memória das empresas, no contexto do branding, indicam como valiosa ferramenta de comunicação institucional, gestão da marca e engajamento de seus públicos, sendo vista para além de uma simples linha do tempo, com grandes marcos de sua trajetória, mas uma construção relacionada com a percepção de si mesma para dentro e para fora da instituição.
É interessante entender que as relações das pessoas com as histórias das empresas transcendem os limites de empresa e consumidor. O acervo do setor energético é consultado também como fonte para procura de entes queridos que trabalharam em empresas, como a Light, para estudo da composição étnica dos trabalhadores do setor, entre outros. Então, os documentos criados para uma determinada função no passado são ressignificados, pois passam não apenas a documentar para fins legais e administrativos os acontecimentos das instituições, mas também a contar o dia a dia das empresas, de seu quadro de funcionários, o contexto sócio econômico e político no qual a empresa estava inserida, além de entender os investimentos e técnicas utilizados para a produção de energia em determinado período.
A memória do setor energético continua em construção, já que as empresas continuam em constante atuação e desenvolvendo o que será memória no futuro. A Fundação Energia e Saneamento continuará a cumprir a sua missão e a sua meta de preservar e disponibilizar cada vez mais e melhor os acervos que estão sob sua responsabilidade.
Danieli Giovanini é historiadora e assistente de Documentação e Pesquisa do Núcleo de Documentação e Pesquisa da Fundação Energia e Saneamento