Self healing e o sistema elétrico de distribuição

Introdução

O sistema elétrico de potência (SEP) está sujeito a diversas intempéries que acabam por prejudicar a confiabilidade da energia elétrica, principalmente devido à descontinuidade do serviço. A interrupção geralmente está relacionada às faltas (curtos-circuitos) que ocorrem no sistema, que, por sua vez, podem ser advindas, por exemplo, de descargas atmosféricas, quedas de árvores e galhos na rede, impacto de animais nos condutores e vandalismo, podendo ser classificadas em transitórias ou permanentes. As faltas transitórias são as mais comuns no sistema de distribuição, correspondendo a cerca de 80% das falhas [1], afetando temporariamente o sistema, uma vez que, após a atuação da proteção, há o religamento da rede caso a falta tenha sido extinguida. Já as permanentes necessitam de intervenção da equipe de manutenção para o restabelecimento da energia, por serem mais severas e os dispositivos de proteção não conseguirem segregar o trecho em falta.

Soma-se a este cenário a vertente da qualidade do produto e do serviço de distribuição de energia elétrica em si [2], que deve se resguardar de critérios de conformidade. De forma ideal, a qualidade do produto prevê tensões senoidais, com taxa de distorção abaixo de 5%, equilibradas, com amplitude e frequência (no Brasil, 60 Hz) constantes e continuidade no fornecimento de energia e oferta ilimitada. Todavia, como o sistema não é ideal, são previstos limites de operação e indicadores de qualidade [3], que devem ser atendidos pelas concessionárias com violação passível de multas.

Logo, as concessionárias buscam diversas maneiras para mitigar os efeitos causados por distúrbios na rede, principalmente os mais severos como as faltas, uma vez que em sua presença as consequências ocorrem tanto no âmbito técnico, devido ao impacto negativo nos indicadores de continuidade, quanto no financeiro, visto o custeio com deslocamentos das equipes de manutenção e multas pela não disponibilidade do serviço. Os principais indicadores envolvidos na qualidade do serviço são os indicadores de continuidade DEC (Duração Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora) e FEC (Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora), contabilizados de forma mensal, trimestral e anual, os quais são os principais afetados pelo tempo até que o sistema seja restabelecido e pela quantidade de interrupções no fornecimento de energia.

No que tange à localização das faltas permanentes no sistema, é notória a necessidade de as concessionárias encontrarem o ponto sob defeito de modo rápido e preciso para que as decisões e o restabelecimento da energia ocorram no menor tempo possível. Tradicionalmente, a proteção é coordenada para eliminar a falta temporária e segregar a menor carga possível quando uma falha é permanente. Esta coordenação é provida por disjuntores ou religadores a montante associados a elos fusíveis a jusante, cujos tempos de operação são distintos para o seccionamento mais próximo à falta.

Paralelamente, a equipe de manutenção realiza a inspeção visual para a localização das faltas, porém, é pouco vantajosa devido ao longo tempo de inspeção e do custo relacionado. Logo, um dos métodos de mitigação do tempo de localização das faltas é a tomada de decisão precisa pautada em tecnologias modernas de monitoramento dos alimentadores, sendo os indicadores de faltas uma das soluções mais plausíveis. Além disso, a automação do sistema de distribuição é um grande recurso para a redução dos custos operacionais e do tempo de descontinuidade no fornecimento de energia. 

Os sinalizadores de falta (SF) são equipamentos que operam de acordo com os níveis de corrente de curto-circuito [4] ou de tensão, sendo emitidos sinais luminosos locais, além de envio de dados com a informação de trip em alguns desses modelos. No Brasil, o procedimento de localização de faltas em linhas aéreas com o uso de SFs ainda não é disseminado, devido ao alto custo de importação para as soluções existentes.

Metodologia de pesquisa de faltas com sinalizadores

Atualmente, a pesquisa de faltas em redes de distribuição aéreas é realizada sem o auxílio de ferramentas. Neste tipo de metodologia, também conhecida como pesquisa trecho a trecho, são realizados os seguintes passos:

  • A falta ocorre em um trecho da rede desconhecido e os dispositivos de proteção, como disjuntor de saída do alimentador primário, religador de distribuição e seccionador automático, atuam conforme as configurações de coordenação e seletividade previstas;
  • O dispositivo de proteção responsável pela zona de proteção onde está localizada a falta inicialmente secciona o circuito. Em seguida, realiza as tentativas de religamento automáticas, que variam em quantidade e intervalo de tempo conforme o equipamento adotado pela concessionária;
  • Ao realizar a última tentativa de religamento, sem sucesso, o dispositivo entende que a falta é permanente e mantém o circuito seccionado até que haja intervenção;
  • A partir dessa condição, as equipes de manutenção são acionadas para realizar a inspeção da rede com a finalidade de localizar o ponto de ocorrência da falta;
  • A inspeção é realizada a jusante do dispositivo de proteção que seccionou o circuito. Primeiro, é inspecionado o tronco principal, em trechos chamados de blocos de carga, delimitados pelas chaves existentes;
  • A pesquisa de falta consiste na abertura da chave a jusante do bloco, seguida de uma tentativa de religamento. Se o religamento for realizado com sucesso, deduz-se que a falta está localizada a jusante da chave aberta. Este procedimento é repetido até que o trecho sob falta seja identificado;
  • Uma vez identificado o trecho sob falta, a equipe de manutenção realiza uma inspeção visual detalhada para que a falta seja localizada e eliminada; 
  • Se a falta não for localizada no tronco principal, o procedimento é repetido para os ramais, onde as chaves fusíveis são abertas e tentativas de religamento são realizadas.

Todo o procedimento é coordenado pelo centro de operações da concessionária e, dependendo do tamanho da rede e da natureza da falta, pode se tornar bastante demorado. De forma a tornar a pesquisa de faltas mais eficiente, isto é, diminuir o tempo gasto até que o problema seja identificado, pode-se utilizar um dispositivo destinado a sinalizar a passagem de uma corrente de falta por um condutor. A metodologia de pesquisa de faltas baseada em IFs, de uma forma geral, consiste em dois procedimentos principais: alocação dos IFs e a pesquisa de falta em si.

O procedimento de alocação IFs varia conforme o tipo de rede e a concessionária, e pode ser realizado tanto a partir da experiência das equipes de manutenção quanto a partir da aplicação de algoritmos sofisticados. Entretanto, de forma geral, este procedimento visa instalar a menor quantidade possível de IFs ao longo da rede de modo a possibilitar a identificação do caminho da falta e, por conseguinte, a localização do trecho que a contém. Isso é geralmente realizado instalando-os em derivações do alimentador e trechos rurais da rede, os quais costumam ser demasiadamente longos.

Uma vez instalados os IFs, o procedimento de pesquisa de faltas é realizado da seguinte forma:

  • A falta ocorre em um trecho da rede desconhecido e os dispositivos de proteção, como disjuntor de saída do alimentador primário, religador de distribuição e seccionador automático, atuam conforme as configurações de coordenação e seletividade previstas;
  • O dispositivo de proteção responsável pela zona de proteção onde está localizada a falta inicialmente secciona o circuito. Em seguida, realiza as tentativas de religamento automáticas, que variam em quantidade e intervalo de tempo conforme o equipamento adotado pela concessionária;
  • Ao realizar a última tentativa de religamento, sem sucesso, o dispositivo entende que a falta é permanente e mantém o circuito seccionado até que haja intervenção;
  • A partir dessa condição, as equipes de manutenção são acionadas para realizar a inspeção da rede com a finalidade de localizar o ponto de ocorrência da falta;
  • Em vez de se realizar a pesquisa trecho a trecho, conforme descrito no procedimento de pesquisa de faltas sem o auxílio de IFs, a equipe de manutenção se dirige aos pontos onde estão localizados os IFs, que possuem sinalização de falta local por meio de bandeirola ou elemento luminoso de alta intensidade;
  • Cada IF é inspecionado visualmente, sendo identificados aqueles que foram sensibilizados pela passagem da falta e permitindo que a equipe de manutenção deduza o caminho da falta;
  • Se a quantidade de IFs for suficientemente grande para que o trecho que contém a falta seja precisamente identificado, a equipe de manutenção realiza a inspeção deste trecho em busca da natureza da falta.

Entretanto, a condição anterior não é frequentemente encontrada, sendo a quantidade de IFs insuficiente para permitir a imediata identificação do trecho sob falta. Neste caso, os IFs permitem a identificação de uma região maior da rede, composta por vários trechos que possam conter a falta. Neste caso, uma vez que esta região é identificada, a equipe de manutenção realiza a pesquisa trecho a trecho, como no procedimento anterior, até que a falta seja localizada.

Um exemplo de aplicação dessa metodologia é mostrado na Figura 1, onde os IFs são representados por círculos na rede de distribuição em questão.

Figura 1 – Exemplo de aplicação da metodologia de pesquisa de faltas auxiliada por IFs.

Uma vez ocorrida a falta, o dispositivo de proteção (chave) atua e secciona o circuito. Entretanto, antes que o circuito seja seccionado, os IFs que estão no caminho da falta são sensibilizados e ativam seus dispositivos de sinalização. Estes IFs são representados na Figura 1 na cor vermelha, enquanto os IFs não sensibilizados são representados na cor azul. A sinalização dos IFs sensibilizados, então, permite que a equipe de manutenção identifique o caminho da falta e restrinja a inspeção detalhada da rede a uma região específica. 

A aplicação de IFs com sinalização de falta local apresenta consideráveis ganhos sobre a pesquisa de falta sem auxílio de IFs. Em alguns casos, onde IFs são instalados em redes rurais de topologia complexa, há uma redução estimada do tempo localização de falta em 50%. 

O procedimento descrito acima pode ainda ser melhorado se houver o emprego de IFs dotados de sinalização de falta remota, isto é, que consigam se comunicar de alguma forma com a equipe de manutenção, a distância, reduzindo a necessidade da inspeção visual de cada IF para a dedução do caminho da falta. Esta funcionalidade possibilita um considerável ganho de tempo durante a pesquisa de falta.

Ao associar estes dispositivos de seccionamento e detecção precisa de falha à automação do sistema de distribuição, é possível reestabelecer a rede com a operação remota de equipamentos de manobra e seccionamento, de maneira que durante em caso de contingências, carregamento da linha e/ou a regulação dos níveis de tensão o sistema seja o mais otimizável possível. Desta maneira, aplica-se o conceito de smart grids, que trata da utilização de sensores para monitoramento, proteção e medição remotas, com o intuito de integralizar o sistema e otimizá-lo ao máximo [4] evitando o desabastecimento de energia.

Neste contexto, entra o self healing (autorrecuperado), que consiste em um sistema que é capaz de detectar, analisar, responder e restabelecer o sistema perante falhas [5]. Pelo seu significado, é notória a importância do estudo de self healing para a otimização do sistema de distribuição, envolvendo desde a coordenação da proteção até o monitoramento do sistema para a reconfiguração em caso de faltas.

Self healing

Como dito anteriormente, com a inserção do self healing no sistema elétrico, perante uma falta no circuito, seja devido à uma falha de linha, do transformador ou outro elemento que faz parte do sistema, ou também à necessidade de transferência de carga entre alimentadores, o sistema deve ser capaz de “autorrecuperar”. Com o intuito garantir a integridade do sistema mantendo a qualidade da energia tanto em termos da qualidade do produto como na qualidade do serviço, além de realizar a “recoordenação” da proteção após a transferência de carga.

Para a implementação do self healing vê-se a necessidade de inserir equipamentos que possuam comando remoto (manobrados remotamente) e utilizar a tele proteção. Em relação à proteção é de suma importância que haja a coordenação entre todos os elementos de forma que durante os processos de manobra e de restabelecimento não haja um trip incorreto. Dessa maneira, deve-se inserir IEDs (Inteligent Eletronic Devices) para realizar o comando dos religadores e das chaves, estes equipamentos normalmente são integralizados ao SCADA (Supervisory Control and Data Acquisition) fazendo com que haja o aumento da confiabilidade do sistema elétrico.

Em um sistema com self healing, os pontos de manobra podem ser divididos em elementos Grid e Tie, sendo que os elementos do tipo Grid são NF (normalmente fechado) e os do tipo Tie são NA (normalmente aberto). Em geral, os elementos do tipo Grid estão instalados no alimentador e em saída das subestações, enquanto os do tipo Tie estão instalados na interconexão entre dois circuitos que podem ou não serem de uma mesma subestação. Além disso, os sistemas com self healing podem ser divididos em três tipos [6] sendo descritos na Tabela 1:

Tabela 1 – Arquitetura de controle de sistemas com self healing

A Figura 2 apresenta o exemplo de um sistema de distribuição com dois alimentadores, com interligação por um religador do tipo Tie e ao longo de cada circuito com religador do tipo Grid.

Figura 2 – Exemplo de rede de distribuição com sistema self healing.

Caso haja um curto-circuito permanente entre o disjuntor D1 e o religador R1 e o sistema não tivesse self healing, o IED do disjuntor D1 fará a identificação do evento e, de acordo com a parametrização da proteção, ele dará o trip para que o disjuntor abra. Neste caso, todos os consumidores localizados a jusante deste disjuntor seriam afetados, demonstrados, neste exemplo pelas cargas 01, 02 e 03. Já, com self healing, logo após a falta ter sido isolada, é realizado o restabelecimento da rede através da abertura do religador R1 e o fechamento do religador R3, fazendo com que as cargas 02 e 03 sejam restabelecidas. Desta maneira o menor número de cargas foi prejudicada. Vale a pena salientar, que o sistema self healing deve respeitar todos os limites de operação do circuito, por exemplo, níveis de tensão, capacidade de corrente dos cabos e das chaves, seletividade, transformadores da subestação, fluxo de potência etc. [7]. 
Como exemplo de lógica para restabelecimento através do self healing tem-se o fluxograma apresentado a seguir.

Figura 3 – Fluxograma restabelecimento por self healing.

Referências bibliográficas

  1. F. Sato “Análise de curto-circuito e princípios de proteção em sistemas de energia elétrica” (Elsevier, Rio de Janeiro 2015, page 85)
  2. R. Dugan, M. Mcgranaghan, F. Mark, S. Santoso, H. Beaty “Electrical Power Systems Quality” (Mc Graw-Hill, New York 1996, page 265)
  3. Anexo VIII da Resolução Normativa N° 956, Procedimento de Distribuição de Energia Elétrica do Sistema Elétrico Nacional Módulo 8 PRODIST (ANEEL, Dezembro 2021)
  4. C. Gellings. “The Smart Grid: enabling energy efficiency and demand response”. The Fairmont Press, Inc.2009
  5. R. Falcão. “Integração de tecnologias para viabilização da Smart Grid” (III Simposio Brasileiro de Sistemas Elétricos, 2010, pages 1-5)
  6. R. Vaz. “Metodologia de posicionamento de religadores e dimensionamento de rede de fibra óptica para automação de sistemas de energia”. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2017.
  7. Lopez, J. C., Rider, M. J., Calvalcante, P. L., Garcia, A. V., Martins, L. L., Miranda, L. F., & Silveira, L. F. (2017, November). Smart Grids: Self healing and Switch Allocation in a Real System. In The 12th Latin-American Congress on Electricity Generation and Transmission CLAGTEE (pp. 1-10).
  8. IEEE Guide for the Application of Faulted Circuit Indicators (IEEE Power Engineering Society 2007, page 8)

Autores:

Por Guilherme Ferraz, engenheiro eletricista pela Universidade Federal de Itajubá, com Mestrado e Doutorado em Sistemas Elétricos de Potência pela mesma instituição. Atualmente, é CEO da empresa HVEX.

Mariany Ribeiro de Carvalho, engenheira eletricista pela Universidade Federal de Itajubá e analista em engenharia elétrica na HVEX.

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