Edição 121 – Fevereiro de 2016
Reportagem: Transferência
Por Bruno Moreira
Segundo a Aneel, mais de 90% dos municípios já assumiram os ativos de iluminação pública, no entanto, há ainda um número crescente de ações contrárias à medida imposta pela resolução da agência.
Há pouco mais de um ano encerrou-se o prazo limite para que as distribuidoras de energia elétrica do Brasil transferissem os ativos de iluminação pública (lâmpadas, luminárias, relés e reatores) para as prefeituras dos municípios em que estes equipamentos estivessem instalados. Desde que a medida foi instituída, no artigo 218 da Resolução Normativa nº 414/2010 da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), de 9 de setembro de 2010, não houve um consenso entre os envolvidos, com muitas prefeituras em todo o país acionando a Justiça a fim de que a transferência não se concretizasse. Entre as razões alegadas pelas concessionárias estão desde a exacerbação da competência da Aneel, que deveria regular e fiscalizar, mas não legislar, até a falta de recursos financeiros por parte dos municípios para arcar com os custos que viriam com a nova atribuição.
O fato é que, passados cinco anos e meio da publicação da resolução e duas prorrogações de prazo, a grande maioria das administrações assumiu os ativos de iluminação pública. Para se ter uma ideia, em balanço divulgado no meio de 2015 pela Aneel, dos 5564 municípios brasileiros existentes na época, 5107, ou seja 91,7%, já haviam se responsabilizado pelos ativos de iluminação pública, restando somente 457 municípios (8,3%) para se adequar. Em números atualizados, até o dia 1º de fevereiro, os municípios que ainda não haviam assumido a responsabilidade pelo parque de iluminação pública, em decorrência de liminares judiciais que impedem a transferência, haviam caído para 320.
Para o advogado especialista no segmento de iluminação pública, Alfredo Gioielli, contudo, estes dados declarados pela Aneel “são facilmente contestados e estão distorcidos para atender aos seus interesses”. De acordo com ele, a explicação para este número tão alto é que a transferência de ativos de iluminação ocorreu de maneira compulsória. Além disso, erroneamente, viola as diretrizes do próprio § 6º do art. 218 da Resolução nº 414/2010 da Aneel que fixa que os ativos deveriam ser transferidos dentro da norma técnica e em condições de funcionamento. Isto não ocorreu, segundo o advogado. Assim, as distribuidoras de energia deixaram de prestar o serviço público essencial a população sem realizar qualquer reparo no parque, afetando o interesse público e causando prejuízo ao erário.
Com o intuito de ilustrar a dificuldade dos municípios em receber estes ativos em más condições de uso, o advogado cita a ação do Procurador Geral de Justiça do Estado de São Paulo que, segundo ele, no uso de suas atribuições e a pedido do Centro de Apoio Operacional de Patrimônio Público e Social, fez publicar no Diário Oficial do Estado de São Paulo no dia 17 de setembro de 2014, Comunicado nº 376/2014-PGJ, registrando que “a assunção de ativos em situação precária e/ou sem que tenham sido observadas e cumpridas as normas técnicas da ABNT aplicáveis, poderá ensejar a responsabilização dos gestores públicos que se omitirem ou negligenciarem a este respeito, sendo renovada essa observação no Comunicado PGJ nº 307/2015 em 26.06.2015”.
Neste sentido, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo fez publicar o Comunicado SDG nº 034/2014, expedido em 26 de novembro de 2014, orientando aos gestores municipais que as prefeituras avaliem o estado de conservação e funcionamento de seu sistema de iluminação púbica para que seja recebido em perfeito estado de funcionamento, exigindo das distribuidoras os reparos que se fizerem necessários.
Segundo Gioielli, com base nesta orientação, muitos municípios paulistas, visando mitigar o risco de danos aos recursos públicos, elaboraram levantamento do estado de conservação do parque de iluminação, exigindo das distribuidoras os reparos nos ativos com base em laudo de vistoria técnica que levou em conta duas premissas: condições de operação do sistema e se os equipamentos atendem às normas técnicas da ABNT. Conforme o advogado, por meio deste levantamento, alguns municípios constaram por amostragem que o índice de luminárias que não estavam adequadas conforme resolução chegava a mais de 80%, inexistindo a proteção exigida pela norma NBR-15129:2012, o que impediria, de acordo com a própria resolução da Aneel, o recebimento desses ativos pelo município. “É muito fácil apresentar indicadores de transferências realizadas compulsoriamente sem a observância do que exige a própria resolução”, afirma Gioielli, destacando que “municípios com menos de 80 mil habitantes estão com graves dificuldades de fazer a gestão por falta de expertise, bem como por falta de recursos financeiros”.
Municípios com dificuldades
Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul, é um exemplo de município que teria grandes dificuldades caso assumisse permanentemente a gestão de iluminação pública. Por isso, por meio de seu setor jurídico, a prefeitura ingressou com ação judicial solicitando a suspensão dos efeitos do artigo 218 da Resolução Normativa nº 414/10 e, consequentemente, da transferência dos ativos de iluminação pública da distribuidora de energia elétrica Elektro para o município sul mato-grossense. Em julho do ano passado, o Juiz Federal da 1ª Vara Federal de Três Lagoas, Roberto Polini, decidiu a favor da prefeitura, devolvendo a responsabilidade pelos ativos para a concessionária. A decisão, no entanto, segundo o assessor jurídico da Prefeitura de Três Lagoas, Clayton Mendes, não é definitiva, cabendo recurso por parte da Elektro.
Citando a prefeita de Três Lagoas, Marcia Moura, o assessor explica que o município acionou a justiça porque “não teria recursos operacionais, humanos e financeiros para a operacionalização e manutenção do serviço de iluminação pública. Al&eac
ute;m disso, explicação que consta no processo judicial, o serviço de iluminação pública há muito tempo foi atribuído a empresas distribuidoras de energia elétrica, ou seja, os municípios não estavam preparados para exercer tal função, pois a própria União não lhes permitiu exercê-la ao longo dos anos”. Segundo Mendes, a medida da Aneel causaria danos irreparáveis ou de difícil reparação ao município e, mesmo por meio da Contribuição para Custeio do Serviço de Iluminação Pública (CIP), é inviável para a prefeitura responsabilizar-se pela iluminação pública. Entretanto, caso a liminar seja revogada e o município seja realmente obrigado a cumprir à resolução da Aneel, o assessor afirma que será feito estudo para reduzir de gastos e viabilizar, da melhor forma, os meios de se cumprir a determinação.
Outro município que se envolveu em pendência jurídica por acreditar não estar em condições de cumprir com as diretrizes estabelecidas pela Resolução 414/2010 da Aneel foi São Lourenço da Mata, no Estado de Pernambuco. A prefeitura ingressou com ação solicitando a revogação da transferência dos ativos que foi aceita inicialmente pelo Juiz Ubiratan de Couto Maurício. A ação, no entanto, já foi suspensa e os ativos de iluminação pública estão de novo sob responsabilidade da prefeitura local. O procurador geral do município, Marcelo Agnese Lannes, faz questão de salientar, contudo, que a suspensão não significa que o pleito da prefeitura tenha sido negado e que as partes estão aguardando julgamento para saber se os ativos voltarão para a Companhia Energética de Pernambuco (Celpe) ou não. Lannes ainda não sabe a data ao certo. “Julgamentos desse tipo de recurso costumam ser avisados com dez dias de antecedência, mas acreditamos que o julgamento ocorrerá no mês de março”, diz o procurador.
O principal argumento da prefeitura para ingressar com ação na justiça é de que a Celpe descumpriu diretriz estabelecida por resolução da Aneel ao querer transferir os ativos da iluminação sem realizar os reparos na rede elétrica a fim de torná-la operacional. “Não se trata de querer ou não querer arcar com os custos. A administração pública deve respeitar as leis vigentes de forma a proteger os interesses da coletividade. No caso da transferência de ativos, a Celpe simplesmente preferiu enviar um e-mail em 30 de junho de 2015 informando que a partir de 1º de julho de 2015 seriam suspensos definitivamente os serviços destinados à manutenção e operação do ativo de iluminação pública”, explica Lannes.
O procurador de geral de São Lourenco da Mata é explícito ao afirmar que a Prefeitura apenas solicita que a Celpe entregue os ativos de iluminação pública em condições de operação. “O que não ocorreu e não vem ocorrendo”, atesta Lannes. Segundo o advogado, quando houve a resolução da Aneel, os municípios fizeram a lição de casa, realizando auditorias para saber as reais condições do parque de iluminação pública. O relatório desenvolvido pela prefeitura de São Lourenço da Mata apontou sete mil pontos com problemas, sendo dois mil apenas relacionados com postes. “O parque elétrico da Celpe é tão ruim que há dias houve uma ventania de duas horas na região de São Lourenço da Mata e a Celpe demorou 90 horas para religar a rede”, declara Lannes.
Enquanto a ação que a prefeitura moveu não havia sido suspensa, a Celpe chegou a realizar algumas trocas de equipamentos do parque da iluminação pública da cidade, mas que não foram suficientes. No atual momento, Lannes relata que a prefeitura tenta combater alguns danos ocasionados pelo parque de iluminação pública deteriorado, mas em caráter emergencial. Em razão da escuridão, por exemplo, foram relatados casos de consumo de drogas em vias onde antes isso não ocorria. “Contudo, a prefeitura não tem recursos para realizar tais ações. Atualmente, são utilizados recursos de obras, que poderiam ser empregados em áreas de saúde, educação, etc. Isto está causando prejuízo ao município”, afirma o procurador.
Não obstante, caso perca a ação, o advogado assegura que o município irá arcar com o que determinar o Poder Judiciário. Lannes confia, porém, que a prefeitura sairá vitoriosa no seu pleito. “O Poder Judiciário certamente irá impedir que uma concessionária, após cobrar altas tarifas por anos, sem qualquer investimento, mantendo a rede elétrica de forma precária, simplesmente, entregue um parque elétrico inoperante impondo o ônus a toda população de São Lourenço da Mata”, declara.
Ao contrário do que afirma a Prefeitura de São Lourenço da Mata, a Celpe declara que tentou de todas as formas atender às solicitações da administração municipal e que, mesmo assim, foi ignorada. O superintendente comercial da distribuidora de energia elétrica, Hélio Rafael, explica que, em março de 2015, época em que, segundo ele, legalmente, a transferência dos ativos já deveria ter sido concretizada, a Celpe realizou uma audiência com os municípios, na qual apresentou um instrumento de acordo. Tratava-se de um documento inicial, que não objetivava naquele momento, se assinado, efetivar o repasse dos ativos, mas acenava para tal. “Neste documento constavam quais pontos, reclamados pela população e pelo próprio município, necessitavam de reparo e manutenção”, diz. Rafael conta que, na ocasião, foi distribuído este termo de acordo, que foi assinado por um grande volume de prefeituras. Entre as que não assinaram estava a prefeitura São Lourenço da Mata.
Posteriormente, a Celpe voltou a procurar o município pernambucano, sugerindo que fizessem um levantamento de outros pontos de iluminação necessitados de manutenção, além daqueles que a distribuidora já possuía no seu sistema, e mesmo assim, conforme o superintende comercial, não houve interesse por parte da prefeitura. Rafael recorda que, desde dezembro de 2014, as distribuidoras de energia elétrica deixaram de ser remuneradas em suas tarifas para realizarem os serviços referentes à iluminação pública dos municípios. “Mesmo sem a tarifa, mesmo coberto pela legislação, nós procuramos o acordo”, argumenta. “Houve prefeituras que entregaram o acordo depois. Mas em nenhum momento houve intenção por parte do município de São Lourenço da Mata de fazer o acordo”. Dos 184 municípios atendidos pela Celpe, 137 assinaram o acordo e fizeram a transferência. No entanto, com São Lourenço da Mata, de acordo com o representante da distribuidora, não houve nenhum ti
po de entendimento e nenhum interesse por parte da prefeitura em fazê-lo.
Rafael relembra ainda que, em setembro de 2012, data que, inicialmente, era o prazo final para a adequação, a transferência havia ocorrido em quase todos os estados. Segundo ele, o Estado do Pernambuco foi um dos poucos da União que resistiram à mudança. “Dentro do país, o Estado de Pernambuco é uma exceção e dentro do Estado de Pernambuco São Lourenço da Mata é outra exceção” diz. Sobre a ação judicial, a Celpe afirma que recebeu a notificação de que esta havia sido aceita no início de dezembro de 2015 e de que, em dez dias, o departamento jurídico da concessionária conseguiu que ela fosse suspensa. “Tivemos outras ações e todas foram revertidas”, comenta o superintendente.
Questão longe de um desfecho
Para Alfredo Gioielli, no entanto, esta questão envolvendo Aneel, distribuidora e municípios está longe de uma resolução. Nesse sentido, o advogado especialista em iluminação pública traça um breve quadro do posicionamento atual do judiciário com relação aos questionamentos sobre a resolução da Aneel. Segundo ele, três Tribunais Regionais Federais (TRF) já definiram a posição sobre a ilegalidade da transferência dos ativos de iluminação pública: os TRF da segunda, terceira e quinta regiões. “Para os tribunais, a transferência compulsória de serviços ou a obrigatoriedade de receber ativos pelas Resoluções 414/2010 e 479/2012 da Aneel fere a autonomia municipal e o pacto federativo”, explica. Gioelli salienta que, para os desembargadores federais, a transferência somente poderia ocorrer se houvesse lei específica e não por uma resolução, caracterizando que a Aneel extrapolou os limites de sua competência.
Além disso, o advogado destaca que centenas de ações ajuizadas com liminares concedidas tiveram o mérito confirmado em segunda instância afastando a obrigatoriedade do recebimento dos ativos de iluminação. Já outras ações que tiveram liminares indeferidas foram revertidas em segundo instância, demonstrando claramente o abuso praticado pela agência reguladora. Segundo Gioielli, tais fatos não são apontados pela Aneel em seus relatórios de transferência.
Gioielli alerta também sobre o risco que correm os municípios que realizaram as licitações e contrataram empresa para fazer a gestão do parque de iluminação pública, mas já tiveram liminares aceitas, obrigando as distribuidoras a aceitarem de volta os ativos. “As cidades que conseguiram realizar suas contratações, por meio de licitações, e tiveram êxito posteriormente nas ações judiciais devolvendo essa obrigação as distribuidoras de energia, poderão ser questionadas pelo Ministério Público em razão de não poderem ter gastos com o serviço com a decisão judicial a seu favor”, afirma.
Como exemplo, pode-se destacar, segundo o advogado, a cidade de São José do Rio Preto (SP), cuja prefeitura já havia iniciado o processo de licitação para a manutenção de serviço de iluminação pública dos municípios, e que, concomitantemente, recebeu decisão favorável em segunda instância no Tribunal Regional Federal devolvendo a obrigação de arcar com os custos do parque de iluminação pública para a distribuidora de energia local. Conforme Gioielli, o Ministério Público alertou, na ocasião, a Administração Municipal que, se houvesse gasto com o mesmo serviço, na vigência da decisão favorável, isto poderia caracterizar improbidade administrativa. Assim, a Procuradoria do Município de Rio Preto optou pela revogação da concorrência, que previa gasto de R$ 7,2 milhões.