Descarbonização, descentralização e digitalização formam a tríade que vem transformando a distribuição de energia em todo o mundo. As redes subterrâneas já são aliadas desse desenvolvimento tecnológico em outros países. O que falta para que avance também no Brasil?
Por Daniel Bento*
Estamos vivendo uma era de transformações em diversos aspectos de nossas vidas, transformação na forma como as pessoas de deslocam, se comunicam, se relacionam e também na maneira como a energia elétrica é produzida e consumida.
Tal situação não é uma particularidade do Brasil. Todo o mundo tem passado por essas transformações que, no segmento de energia elétrica, estão baseadas em três pilares fundamentais: descarbonização, descentralização e digitalização.
A descarbonização é uma evolução e adaptação do conceito de sustentabilidade que foi muito debatida em anos passados e que já está bem consolidada no mercado. No setor de energia elétrica, a descarbonização consiste na troca de fontes de geração de elevado nível de emissões dos gases causadores do efeito estufa por outras consideradas limpas e, preferencialmente, renováveis.
A descentralização parte do princípio de que o consumidor, que está na ponta do sistema elétrico, passa a ter a possibilidade de gerar e armazenar a energia elétrica, fazendo com que a produção não fique mais apenas localizada nas grandes usinas.
A digitalização passa pelo emprego da tecnologia no sistema elétrico. Essa tecnologia está presente na geração ao consumo. A sua aplicação próxima do consumo, onde é mais visível por toda a população, reside nas redes elétricas inteligentes que podem ter diversos recursos e serviços oferecidos aos consumidores.
Esses pilares estão presentes em todo o mundo, sendo que cada país avança com velocidade distinta, de acordo com o incentivo e diretriz que cada nação dedica ao tema.
O Brasil também apresenta condições para seguir esses pilares mundiais; contudo, no nosso caso, há uma particularidade que se refere à infraestrutura para que tudo funcione. Dentre os aspectos de infraestrutura relevantes e fundamentais, destacam-se a rede de telecomunicações e a robustez da rede de distribuição de energia. Tendo em vista a ênfase desta revista no setor elétrico, será destacado neste artigo apenas a rede de distribuição de energia.
Os benefícios da rede subterrânea
Como no Brasil quase a totalidade da rede de distribuição está construída de forma aérea, a robustez desejada fica comprometida. Nos países mais avançados com os três pilares fundamentais de desenvolvimento do setor elétrico, a maior parte da rede de distribuição nos centros urbanos está instalada de forma subterrânea.
A rede de distribuição subterrânea apresenta vantagens significativas, sendo, inclusive, essas vantagens que motivam há muitos anos o emprego deste tipo de rede nas cidades mais modernas do mundo.
Algumas das vantagens sequer estão ligadas aos pilares aqui apontados de evolução do setor elétrico, como o maior atrativo ao turismo e a maior segurança para a população. Locais com redes subterrâneas apresentam uma paisagem urbana muito mais bonita, sendo, consequentemente, muito mais agradável ao turista. Ademais, a rede exposta oferece riscos gravíssimos de acidentes com a população, o que efetivamente ocorre, inclusive, com muitos acidentes fatais. Contudo, apesar de estes argumentos por si só já serem suficientes para justificar o emprego de redes de forma subterrânea, vamos nos ater aos três pilares citados no início deste artigo.
Analisando a descarbonização, vamos avaliar uma situação muito interessante e que não está ligada diretamente à operação da rede, que seria a sua manutenção, seja ela corretiva ou preventiva. Vale destacar que a rede aérea apresenta muito mais necessidade de realização de manutenções corretivas do que a rede subterrânea.
Para realizar as ações de manutenção das redes aéreas, geralmente, as equipes precisam de um caminhão provido de cesta aérea. Durante a realização das atividades, o caminhão precisa permanecer ligado para o funcionamento do sistema hidráulico da cesta aérea. Imagine as centenas de caminhões movidos a óleo diesel utilizados pelas distribuidoras de todo o País que permanecem ligados o dia todo, não apenas para o deslocamento, mas também durante as horas que permanecem parados para realização das atividades.
Nas redes subterrâneas, não há essa necessidade, pois os veículos podem permanecer desligados durante a realização dos trabalhos. Adicionalmente, deve-se considerar também a menor quantidade de deslocamento de veículos devido à quantidade reduzida de ações de manutenção corretiva, além do fato de que, em média, os veículos possuem menor porte.
Tratando da descentralização, também há um benefício da rede subterrânea, pois tanto a topologia da rede, como a capacidade de condução dos condutores, permite a conexão de maiores potências do que as redes de distribuição que, pela sua característica predominantemente radial, apresentam limitações.
Topologias subterrâneas, em geral, possuem uma alta confiabilidade. Mesmo não considerando o sistema reticulado (Network) pelo seu alto custo, é possível ter confiabilidade dezenas de vezes superior à das redes aéreas, utilizando topologias elétricas, tais como: radial com recurso, primários seletivos e outros. Isso permite a inclusão de outras maneiras de escoamento da energia elétrica produzida de forma descentralizada que, sem essa alternativa, seria uma barreira para a instalação deste tipo de geração.
A influência da digitalização na rede de distribuição
Em relação à digitalização, podemos projetar o que ocorrerá no futuro usando a nossa experiência presente da televisão e vídeos assistidos pela internet. No passado, quando a TV chegava apenas pelo sinal transmitido por meio de ondas no ar ou através de um cabo dedicado para essa finalidade, a internet em casa era apenas utilizada para computador e celular, geralmente, com uma exigência de desempenho reduzida.
A partir do momento em que surgiram as tecnologias de streaming, diversas empresas de TV passaram a oferecer seus serviços de vídeo junto com a internet, além do que novas empresas surgiram apenas com o propósito de prestação deste serviço pela internet. A partir desse momento, a nossa exigência com o serviço de internet aumentou muito, afinal, é muito desagradável quando estamos assistindo nosso filme ou série favorita e a imagem congela por conta de problemas no sinal.
Com a energia elétrica não deve ser diferente. A partir do momento em que tivermos uma grande diversidade de serviços digitalizados associados à energia elétrica, nos tornaremos mais exigentes em relação a sua confiabilidade e neste aspecto a rede subterrânea apresenta índices muito superiores de confiabilidade.
Vale, inclusive, o destaque para o aspecto da confiabilidade, que é um segmento com grandes avanços nas redes subterrâneas. Nos últimos anos, surgiram alguns produtos que oferecem uma inteligência embarcada que, associada ao poder computacional, permite realizar avaliações e análises preventivas, proporcionando intervenções mais assertivas na rede.
Na prática, as manutenções nas redes subterrâneas concentram-se nos cabos, transformadores e chaves, além das infraestruturas civis. A ABNT NBR ISO 55000, que trata da gestão de ativos, já comentada nesta revista (Coluna: Redes Subterrâneas em Foco – Edição de abril 19), pode e deve servir de referência para estabelecer o programa de manutenção; contudo, as manutenções em transformadores e chaves (elementos elétricos) estão relativamente consolidadas, tendo em vista que não diferem muito da maneira utilizada em outras aplicações, tais como, subestações e outros.
Porém, quando o assunto é o cabo isolado de média tensão, que em sua grande maioria possui alta confiabilidade, é comum não ser considerado para a manutenção preventiva e preditiva. Entretanto, sabemos que, em se tratando de um elemento elétrico, a pergunta correta não é se o cabo irá falhar, mas sim quando irá falhar?
Desenvolvimento e aplicação
Manutenções para cabos isolados de média tensão estão previstas já há alguns anos em referências internacionais (IEC, IEEE, CENELEC). Está em andamento no Cigré um grupo de trabalho (WG B1.58) envolvendo diversos países, inclusive, com a participação do Brasil, para confeccionar uma brochura técnica sobre as melhores práticas internacionais nas manutenções preditivas e preventivas para os cabos isolados de média tensão.
As técnicas referenciadas nas normas existentes, principalmente no guia do IEEE 400.2, estabelecem os ensaios de Tangente Delta em tensão alternada na frequência de 0,1 Hz. Com este ensaio é possível avaliar o grau de degradação do isolante do cabo.
Essas medições são realizadas há algumas décadas e a análise de toda essa massa de dados, utilizando técnicas de big data, permite elaborar uma série de projeções por meio de apenas uma única medição ou algumas poucas medidas.
Um exemplo desta aplicação é o estudo e o desenvolvimento de um software especializado em calcular a vida remanescente dos cabos isolados em operação, elaborado em parceria pela empresa austríaca Baur, líder mundial na fabricação de equipamentos para manutenção em cabos, e a empresa Kepco, concessionária sul-coreana.
O estudo se baseou em mais de 45 mil medidas de Tangente Delta em 15 mil circuitos de cabos subterrâneos de média tensão.
O resultado foi o desenvolvimento de um eficiente software de análise estatística (STATEX), no qual as medidas de Tangente Delta são analisadas através de uma série de parâmetros que foram desenvolvidos para auxiliar o entendimento da evolução da Tangente Delta em um cabo de média tensão. A partir da evolução da Tangente Delta (TD), isto é, o comportamento no tempo, foi possível quantificar com uma boa margem de confiança o tempo útil (ou de vida) remanescente do cabo isolado.
Para a determinação do tempo útil, a ICEPCO e a BAUR definiram duas novas grandezas para a análise de Tangente Delta:
O TD-Skirt define o grau de variação de uma medida de Tangente Delta no mesmo passo de tensão. Ou seja, é uma medida da flutuação que a Tangente Delta exibe em determinada tensão aplicada no cabo. Este parâmetro é importante para determinar e diferenciar as perdas dielétricas em si daquelas perdas que são originadas em acessórios (emendas e terminações). A TD-Skirt é a inclinação da reta traçada entre o valor máximo e mínimo das TDs medidas.
- A outra grandeza estabelecida foi o ageing index (índice de envelhecimento), que define o atual estado de envelhecimento do cabo. Ou seja, é uma medida proporcional à idade do cabo. Este parâmetro é uma soma vetorial de três grandezas normalizadas com o auxílio das mais de 45 mil medidas de TD realizadas no projeto de pesquisa. Estas grandezas são a média da TD em 1 U0, a diferença da TD entre 1,5 e 0,5 U0 e a TD skirt em 1 U0. O índice de envelhecimento é o parâmetro essencial para a determinação do tempo remanescente de operação do cabo. Ele é maior que zero é menor que dez (varia de 0 a 10).
A partir do índice de envelhecimento obtido com apenas uma medida de Tangente Delta, o software determina a velocidade de envelhecimento do cabo. Quanto mais medidas são realizadas, melhor a assertividade, no entanto, o software usa também o banco de dados de mais de 45 mil medidas para determinar o tempo remanescente de operação com apenas uma medida de Tangente Delta.
Com este exemplo, podemos perceber o quanto a digitalização estará cada vez mais presente no setor elétrico. Outro fenômeno que podemos verificar é a cooperação entre empresas de países e culturas diferentes, empresa austríaca, sul-coreana e outras, inclusive do Brasil (Baur do Brasil), colaborando com sugestões na melhoria dos produtos que são oferecidos e utilizados da mesma forma em todo o mundo.
Neste contexto, podemos afirmar que as redes subterrâneas se apresentam de forma muito alinhada com os pilares, ou seja, os três D: Descarbonizar, Descentralizar e Digitalizar de forma ordenada e estruturada, permitindo que os resultados efetivos desse avanço metodológico proporcionem os frutos necessários e esperados.
Com este objetivo em mente, passa a ser urgente a necessidade de o Brasil, por meio da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), estabelecer uma agenda sobre redes subterrâneas de energia.
*Daniel Bento é engenheiro eletricista com MBA em Finanças e certificação internacional em gerenciamento de projetos (PMP®). É membro do Cigré, onde representa o Brasil em dois grupos de trabalho sobre cabos isolados. Atua há mais de 25 anos com redes isoladas, tendo sido o responsável técnico por toda a rede de distribuição subterrânea da cidade de São Paulo. É diretor executivo da Baur do Brasil | www.baurdobrasil.com.br